segunda-feira, 14 de julho de 2014

Todo mundo é ninguém




Um dedinho torto se esconde sob a sapatilha. O dente de baixo insiste em cobrir o de cima. As sobrancelhas têm falhas que nunca endireitam, não importa o quanto você passe gotas mágicas de fórmulas vendidas em salão de beleza, pensadas especialmente para fazer você descobrir um defeito. Aquela mancha no rosto insiste em aparecer, mesmo coberta por dois quilos de base. Seu nariz é grande demais, a boca fina, o cabelo grosso, a orelha podia ficar um pouquinho mais colada na cabeça, os olhos são grandes (ou pequenos, tanto faz), os dedos das mãos podiam ser mais longos e a palma um tanto menos achatada. Que tal pernas mais longas? Braços menores?

Dia desses, um cirurgião me contou que existem próteses para qualquer lugar do corpo. Uma delas, vai no queixo, uma bola de silicone, para dar angulação mais interessante ao rosto, sabe? Não, não sei. Nunca tinha pensando no queixo como algo passível de intervenção. Ele dorme e acorda comigo há 27 anos, temos boa relação. Dá até para quebrar as maçãs do rosto, desconstruir-se como quem bota uma parede a baixo. Assim como as reformas intermináveis em nossas casas, podemos ser eternamente insatisfeitos com  a nossa aparência, odiar tudo que nos confere o atestado de obra-prima, de original sem cópia. Queremos nos camuflar, desaparecer entre um exército de clones e nos livrar finalmente de qualquer vestígio daquilo que saiu da barriga de nossas mães.

 Semana passada, um moço me perguntou no elevador se eu tinha um bom dentista. Respondi que estava devendo uma visita, mesmo sem entender a pergunta. Me entregou um cartão e prometeu: "Em coisa de uma ou duas sessões, dou um jeito nesses seus dois dentes separados. Vão ficar novinhos". Ali, bem no meio da minha boca, o moço enxergou um cheque em branco assinado, autorização para me salvar do calvário que é a diferença (puramente estética, nesse caso). Mas quem foi mesmo que disse que preciso "endireitar" o vão entre os dentes? Que desejo pagar para sentir dor para me parecer com todo mundo? O vão me acompanha desde sempre, nunca me incomodou, nem me ofendeu diante do espelho. Pelo contrário, gosto dele, acho um charme. É só mais uma parte de mim, "fora do lugar" pelo mesmo motivo que o céu é azul e o ar é invisível e não cor-de-rosa.

A obrigação de puxar conversa no elevador revela monstros. Um vizinho perguntou porque eu não alisava o cabelo, disse que a filha dele também tinha o cabelo muito ruim e que um fulano tinha dado jeito. Agradeci educadamente e disse que me sentia perfeita, "bonita pra caramba", mas obrigada. A ideia é fazer parte de um lote de gente, parecer o máximo possível com as outras pessoas: alisar o cabelo até que ele fique igual ao da Cleo Pires e não ao meu, afinar o nariz e dar adeus aos antepassados, ficar a cara daquela moça da L´oreal!  A moça da TV tem o cheiro de mil outras moças.

Um namorado da adolescência vivia mascando big big de morango, "para melhorar o beijo". Não tinha bafo nem nada. Sofria de aversão a si mesmo. Terminamos em uma semana, sem que eu pudesse conhecê-lo de verdade. Desde então, o cheiro do chiclete me dá ânsia. De outras pessoas, lembro do aroma do corpo, do toque do cabelo natural entre os dedos, do nariz pontudo que às vezes encostava no meu olho, de um osso estranho no peito, onde era bom encaixar a cabeça, do espirro esquisito, da risada descontrolada. De tudo que não era, mas era, perfeito, enfim, porque não estava disponível em mais ninguém.

Se pudéssemos, teríamos menos barriga, mais bunda, menos peito, olhos azuis. Se tivéssemos escolha, não seríamos nós mesmos e isso é triste o suficiente para nos levar ao caminho de volta. Se pegarmos o retorno,  ainda poderemos seguir rumo a quem somos e respirar aliviados por deixar de ser só mais um trauma de big big na vida de alguém.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

eu que não duro para sempre

Dói quando a unha quebra, quando as costas travam e os cabelos se vão com a água do banho. Tanto faz. Já não me lembro se o que penso foi dito agora ou dois meses atrás. Nada do que é meu me pertence, nem o cheiro, os dedos, nem os anéis, tampouco o esmalte, os dentes separados, a cor dos cachos ou o tom do sorriso. Esses dias, comprei um sapato 34, para o meu pé 36.

Enquanto isso, neva em Nova Iorque, onde gente que não sou eu patina feliz. Acabam as Filipinas, a Tailândia não fica mais perto, Veneza afunda, tulipas brotam na Holanda, mães morrem e aqui alguém faz um bebê. Sobram menos dias, números roubados do calendário, voltas dos ponteiros que ninguém checou, o filme que deixei para amanhã, o gosto que não senti e o livro que não escrevi.

Filha do tempo morto, herdo dele rugas na testa, previstas por alguém do passado. A tristeza ou qualquer tensão cavam suas marcas. E eu que queria ser para sempre já nem sei com que letra se escreve amor. E eu sou só fome por dentro, desejo de vivo em terra que de tanto ser de todo mundo, não é de ninguém. Por fim, de tanto me ver nos seu olhos, me enxergo azul.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

a cura

Ele entrou na sala de aula vestindo uma calça hippie, bata despojada e tênis gastos. Tinha vários livros nas mãos, a barba branca, cheia e não muito curta. Era negro, magro, alto e caminhava com tranquilidade. Entre os alunos, havia toda cor de pele. Todos de família com grana, tinham celular, roupa da moda e cabelo montado no gel. Antes barulhentos, os adolescentes ficaram mudos diante daquela figura, totalmente paralisados. Alguns sentiram medo, era nítido. O homem deixou os livros em cima da mesa de professor e escreveu no quadro: PRECONCEITO.

Assim, conheci Zé Roberto, meu professor de literatura, no ensino médio. A aula daquele dia foi dedicada aos direitos humanos, em especial à igualdade racial. Não teve tom de raiva, de revolta. Era apenas um homem inteligente ensinando um bando de meninos estúpidos sobre o mundo, apresentando um lugar que ia muito além da própria casa e da própria pele. Uma aula sobre a cultura do Brasil e de vários outros países.

Zé conhecia de tudo, do poder dos livros ao olhar de reprovação das pessoas na rua, que atravessavam para o outro lado e seguravam suas bolsas, quando ele se aproximava. Nos anos seguintes, tornou-se amigo dos alunos, dava risadas e dividia histórias. Sem mágoas. Estimulava a turma a montar peças teatrais, baseadas em clássicos da literatura. A viajar na poesia e deixar a cabeça simplesmente pensar e criar. Zé apreciava a criatividade, às vezes até as malandragens disfarçadas de quem havia deixado o ensaio da peça para última hora eram entendidas como ousadia e analisadas como inovação, desde que transmitissem algum prazer e parecesse divertido. Falava sobre drogas e sexo, sempre na posição de educador, porém abertamente, sem hipocrisia, afetação ou com argumentos religiosos.

Naquele tempo, eu só achava o Zé um cara muito legal. Não me incomodava com suas roupas, como alguns colegas, pelo contrário. Achava fascinante, rebelde e jovem, apesar de suspeitar que ele era ainda mais velho do que parecia. Hoje, se o visse por aí, agradeceria por ter me educado e não apenas ensinado a matéria do vestibular, como tantos fizeram. Os cubanos que chegaram hoje ao Brasil foram recebidos como o Zé, vaiados por aprendizes. Os Zés cubanos cumpriram missões em áreas de guerra e sabem lidar com seres humanos. Suas mãos vem curar o corpo de quem há tempos espera por socorro, mas também expõem nossas feridas e o desejo de que elas cicatrizem.

sábado, 24 de agosto de 2013

condições para ser humano

Para erguer uma casa é preciso tijolo, cimento, piso, porta, ferro, às vezes madeira ou só papelão. Um tanto de desejo constrói um ser humano: sem argamassa, sem dinheiro, sem loja, sem alvará. A gente nasce gente, já chega ao mundo filho, quem sabe até irmão. Não importa do que nossa casa é feita. Mas desaba-se como ser humano diante do olhar do outro, quando passa o tempo e a visão fica doente. A pessoa nasce todo dia, enquanto é descoberta por quem vive ao redor. 


Há aqueles que nascem ao contrário, diariamente, logo, morrem segundo a segundo. Tornam-se invisíveis ao se misturar ao asfalto e fazer dele cama, até seu coração queimar em uma noite vermelho-chama. E a gente não sabe quando deixou de existir. Se foi quando o sangue parou de correr ou quando ninguém mais nos via. Sem ter quem chore sua falta, morre-se menos.

Não basta ter pupila, pulmão, neurônio, pele, arrepio, frio, amor, estômago roncador, sorriso, dente estragado, medo, feridas nos pés, braços cansados e uma dose de desajuste. Não basta doer para ser humano. É preciso ter casa com parede, celular, roupa sem furo, mulher sem pelo, filho inteligente, trabalho que paga e duas camadas de verniz, que é para disfarçar a falta de brilho do caminho.


Os três tomaram banho, pentearam os cabelos, comeram comida limpa e vestiram calça jeans lavada pela empregada. Saíram de casa para viver a noite. A ideia de diversão: comprar um litro de gasolina e atear fogo num bicho que dormia, num canto qualquer, depois assisti-lo gritar. O bicho no chão era o homem. Mas os outros bichos, com fósforo na mão e nada no peito, não enxergavam assim. Quem vive despido de casa está nu de humanidade. Quem está à minha frente de olhos fechados, amigo do lixo e parte dele, sem cerimônia com a rua, não é gente como eu, é resto. Portanto, pode queimar.

A menina, acima de qualquer suspeita, alguns diriam, quis se justificar: disse que o bicho havia tentado roubar seu telefone. Logo, merecia morrer queimado e parar de existir, deixar de ser filho, pai, irmão, pessoa, enfim, para o bem da humanidade, dos outros como ela: limpos, honestos, donos de iPhones e de almas nobres. Há quem pense como ela, em toda esquina, e comemore o extermínio de tudo aquilo que "não deu certo": bichos que perturbam nossa paz em busca do nosso dinheiro suado e honesto, eles querem nossos telefones, nossas bolsas, nossos filhos e o uísque que tomamos no fim do dia. Fazem barulho diante dos nossos comércios, espantam gente de bem e deixam sujeira de seus corpos, tão diferentes dos nossos, na frente de nossas portas, que nunca nos guardaram da realidade da qual, inevitavelmente, somos parte.

O fogo faz desaparecer índios que se atreveram a dormir em praças reservadas aos passeios de carrinhos de bebês empurrados pela desigualdade vestidas de branco. Dá fim aos mendigos em Santa Maria, que há anos eram só meninos nos braços de suas mães, gostavam de batata frita e queriam ser jogadores de futebol. O fogo purifica a prata e o ouro, aparece na Bíblia, no circo, no semáforo e nos rituais de magia. A natureza é maior que o homem. É capaz de renascer, depois das chamas. Que nossa humanidade também seja fênix.

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“A ação (...) corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo”

“Seres humanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens”
Hannah Arendt

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

viver sem permissão

Ser vadia é cansativo. O papo nunca muda. Homens escolhem "esposas" ou namoradas como se se casar com eles fosse um prêmio da loteria. Quase uma seleção do Cespe. Eles são a grande recompensa que a mulher recebe por se encaixar em todos os itens de uma check list bizarra: não beba, não fume, não use saia curta, não dê para qualquer um, seja limpinha, alise o cabelo, não seja gorda. A primeira vez em que tive vontade de me casar foi quando me pediram em casamento. Antes disso, não tinha qualquer ideia sobre bolo, festa, vestido de noiva e, ainda hoje, nem penso em filhos.

Portanto, o argumento "ninguém vai te levar a sério" nunca me comoveu. Há mais para se fazer da vida do que ser levado a sério. Tinha muitos sonhos e uma casa cheia de crianças, com um cara sentado no sofá esperando por comida (minha ideia adolescente sobre o casamento) não figurava em nenhum deles. Ainda bem. Sexo não me parecia algo sobrenatural, mesmo antes de fazer. Sempre pensei em uma transa como algo divertido, que devia fazer quando tivesse vontade. Fim.

Ideia por ideia, palavra por palavra, construi fama de "vadia", "puta" e "piranha", na escola, antes mesmo do ensino médio. Não era a má fama que me incomodava. Eu me achava rebelde, excitante e tudo era tão divertido. Eram as outras meninas da minha idade, em sua maioria todas dispostas a defender a castidade e o bom comportamento (mas só para as mulheres viu?), como se fossem beatas, que me tiravam do sério. Era normal o menino ficar com "qualquer uma", ele é homem e é isso que eles fazem, é assim que eles são.

Algumas me odiavam, outras pediam conselhos. Aos 14 anos, inventaram um boato na escola sobre mim. Disseram que eu tinha abortado. Eu era virgem. Mas nenhuma das garotas da escola suportava minhas opiniões pra frentex sobre primeira vez ou sobre "ficar" com "qualquer um". Para mim, ter vontade justificava tudo. Simples assim.

Precisei mudar de colégio, recebi ameaças nos corredores da escola católica onde éramos alunas. Meninas esbarravam em mim no corredor e ameaçavam me bater na saída. Tudo por conta de um aborto imaginário. Me senti fraca fugindo daquela maneira. Cheguei a pensar que eu era covarde, quando na verdade era vítima do machismo que fazia aquelas meninas, tão novas, com tanto para pensar, sentirem ódio de mim a ponto de querer me ver longe. E eu fui. Levei comigo a história do aborto, que até hoje algum imbecil ainda deve achar que era verdade (e se fosse?).

Todos os colégios "bons" da minha cidade eram católicos, assim como a minha família. Fui parar em outro centro de ensino administrado por freiras e padres. A diversão da galera era inventar histórias que envolvessem as meninas e sua sexualidade. Diziam que fulana transava no banheiro do ginásio todo dia, que era uma grande puta. Outra já tinha abortado três vezes, imaginárias, é claro. Era fácil identificar os alvos: as do short mais curto, que riam mais alto e agiam naturalmente.

A segunda vez que me senti massacrada pelo machismo foi pouco depois disso. Eu tinha 16 anos e um garoto com quem eu ficava achou que eu tinha "dado mole" para um amigo dele. Enquanto eu escrevia no meu querido diário e ouvia músicas românticas pensando no "peguete", ele criou um site especialmente para mim. Chamou a página de Nani vaca. Nani era meu apelido tosco.

Colocou uma foto minha bem grande, toda sorridente, meu número de telefone e uma estampa de vaca no fundo. Escreveu em letras grandes: PROSTITUTA. Não vou dizer que foi legal ver aquilo. Em dois minutos, todas as minhas amigas já tinham me ligado, um amigo queria bater no cara e eu só chorava. Com muita delicadeza, meu amigo convenceu o babaca a tirar o site do ar. Alguns dias depois, esqueceram a história e eu esqueci que gostava dele.

Já estava no ensino médio, em outra escola, quando alguns garotos do novo colégio, por alguma razão que desconheço e pouco me importa, resolveram ressuscitar o tal site. Só doeu quando meu pai precisou ir à escola, conversar com o diretor, porque ficou preocupado da violência gratuita passar do virtual para o real. Meu pai é exemplar. Em nenhum momento me condenou ou censurou, pelo contrário. Meu pai sabe o que é certo e o que é errado e só por isso soube me ensinar a ser autêntica. Sinto que o pai dos garotos (as) da escola não puderam fazer o mesmo por seus filhos.

Nada disso afetava o interesse de garotos legais por mim. Eles ignoravam as besteiras que circulavam nos corredores. Um desses namorados disse o que achava mais bonito em mim. Não falou sobre meu corpo, sobre meus poemas. Falou de mim. "O jeito que você fala sobre tudo que gosta é o que eu mais amo em você. Você tem muita paixão por muita coisa. O jeito que você fala faz eu me sentir bem". Eu falava sobre meus amigos, minha família, sobre escrever e a respeito do futuro: o tempo em que eu seria uma grande escritora e viajaria o mundo todo. Era a opinião desse tipo de cara que me interessava.

Foi um desses que me fez pensar em casamento. Nosso primeiro beijo foi no nada romântico banheiro do bar. Ele sabia de toda a minha vida e por isso gostava de mim. Apesar da aposta entre minhas amigas, que tinham me escolhido como "a que vai ser a última a casar", fui a primeira. A que não negocia a própria liberdade, a que sai sozinha, bebe e dança. Aquela que não liga nenhuma vez para saber onde o namorado está. A que não sabe se vai durar para sempre, mas tem certeza que não vai morrer se terminar. A que transa no primeiro encontro, mas só se quiser. Ainda não escrevi livros nem viajei loucamente. Ainda não peço permissão para viver.

ps: os meninos da escola estão casados com mulheres que fingem orgasmo e dão por "obrigação".

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Com os dois pés no passado

Do outro lado da linha, a voz cheia de simpatia forçada me cumprimenta como se fôssemos amigas de infância. A pessoa tenta me convencer sobre uma sugestão de reportagem. Algo revolucionário, que vai mudar a forma como a humanidade se relaciona... ou talvez uma nova técnica de tinta para esconder a calvície feminina? Tudo pensado por um cliente da assessoria de imprensa para a qual ela, a voz, presta serviços. Deseja falar com a chefia, para reforçar a importância da pauta. Pergunta se a editora é uma "do cabelo enroladinho". Respondo que não, eu, repórter, sou a única na equipe com cachos. Nada melhor para reforçar uma amizade de infância, que começou pelo telefone, há dois minutos, do que compartilhar características em comum.

- Minha filha tem o cabelo beeemm enroladinho. O meu é bem lisinho. Ela tem os dois pés na senzala. Eu gosto, mas ela não. Já falei: não adianta lutar contra, tem que aceitar logo.

Nesse momento, a voz finalmente conquistou minha atenção. Deixei todas as atividades de lado, enquanto a afirmação se repetia na minha cabeça: "Ela tem os dois pés na senzala". Algumas palavras paralisam quem as escuta. Passei o email da editora e desliguei. Em silêncio, pensei no que sentiu a moça que vende bilhetes para cinema, em um shopping de Brasília, quando foi agredida por ser negra. Um médico desejava furar a fila, estava atrasado e, diante da negativa da atendente, disse a ela que fosse "pentear orangotangos na África, que era o seu lugar". Não são situações parecidas. Nunca ouvi nada parecido direcionado a mim. Jamais sofri violência tão explícita, nem me senti discriminada. Não sei (na minha pele) o quanto a cor pesa e como pode definir a forma das pessoas tratarem as outras. Minha pele não é negra, porque a genética não quis. Mas parte de mim é.

Não é apenas uma parte de mim, entretanto, que se sente ofendida quando escuto que alguém tem "os dois pés na senzala". Me dói inteira. Se eu ganhasse um real para cada pessoa que acha exagero se ofender, ficaria rica. É sempre exagero, quando não é com você. O racismo, apesar de ser crime inafiançável, desde 1988, ainda é plenamente aceito. Não tem nada demais em falar sobre "cabelo ruim". Elogio é dizer que fulano é um "negão daquele tamanho, mas tão educado" ou que "ela é linda, nem tem traço de negro". Qual é o problema de dizer que alguém tem os dois pés na senzala, se "todo mundo", usa a expressão, tão inofensiva?

Chamar uma mulher de vadia não é normal, só porque "todo mundo" chama. Usar a palavra gay para xingar o amigo não é ok, só porque "todo mundo" faz. Quem é esse todo mundo que não pensa no que diz e ajuda a manter e a reconstruir a opressão? Se a humanidade inteira guiasse seu pensamento com esse tipo de justificativa, o mundo seria escuro, sem eletricidade, porque sempre foi assim, afinal. A escravidão jamais teria sido abolida, graças ao que alguns preferem achar que não é por mal. Ainda teríamos os dois pés nas senzalas e também os braços, a cabeça, a vida e todas as feridas carregadas das idas ao tronco, posicionado na porta do depósito de escravos. Nunca foi por mal, não é mesmo? Elaboraram uma dezena de motivos, entre eles a vontade de Deus, para justificar a servidão.

É a vez do pensamento se livrar das correntes. Se acharmos "ok", se tudo é piada e nenhuma intenção é séria, ignoramos a história e o que ela representa, suas consequências. Racismo não é só quando alguém manda um negro pentear orangotango. É a ideia de que uma "raça" é melhor que a outra, que alguns são bons ou ruins, a depender do tom de pele ou das características físicas. Um apresentador de televisão diz, sem qualquer constrangimento, que mandará desenhar no carro novo que deu a uma telespectadora uma bonequinha do cabelo ruim, que nem o dela. Todos batem palmas. A moça, negra, de black power, agradece emocionada. Um antigo vizinho me encontra na portaria. "O que você fez com seu cabelo? Lembro que ele era bom, porque você fez isso?", disse, ao se referir a uma época de constantes alisamentos, verdadeiras sessões de tortura, com direito a sangue brotando do couro cabeludo.

Ninguém diz que você tem os dentes ruins, a cabeça ruim (a não ser que seja considerado louco) ou olhos ruins. Ninguém diz que você deve apenas aceitar, se conformar, com os olhos azuis que a genética lhe deu. O azul é raro, portanto valorizado. Olho ao redor e vejo: o cabelo cacheado, crespo, é menos comum. Ser raro não é bom? Como sugere a moça que ainda vê o mundo dividido em duas cores, em casa grande e senzala, "aceito" minhas raízes. Amo, sem nenhuma necessidade de auto-afirmação (ultrapassei essa fase há tempos), os cabelos que a natureza me deu. Se pudesse escolher uma resposta para dar à voz ao telefone, diria que não são os meus pés que pertencem ao passado, mas sim certas ideias escravas, aprisionadas em porões de ignorância.

sábado, 13 de julho de 2013

superamor

Olhei para você, no escuro do cinema, e percebi uma lágrima discreta, que escorria na sua bochecha rosada por conta do frio, enquanto seus olhos acompanhavam a história na tela. Sua mão pequena segurou a minha, você se aproximou do meu ouvido e pediu para sentar no meu colo. Eu te acolhi da melhor maneira. Encaixei sua cabeça entre meu pescoço e meu ombro e você terminou o filme ali, no colo quentinho da sua tia. Quando acenderam a luz, você, já de pé, chegou perto e disse: "Chorei, mas foi só um pouquinho tá?". Eu me vi pequena, de coração na mão, diante de você que só tem 7 anos, calça 32, usa tênis do Superhomem e me desmonta.

Quis te explicar que meninos também choram. Dizer que você é livre, meu amor, para sentir o que quiser ou tudo aquilo que não puder evitar. Só consegui dizer: "Também chorei, amor. Foi tão bonito né?". E você balançou a cabeça com um jeito de quem entendeu que se emocionar é tão bonito que nem sobra espaço para sentir vergonha ou se justificar. Você ficou sensibilizado quando o Sulley, o monstrengo azul desajeitado, decepcionou o amigo Mike, que ficou arrasado porque descobriu que não era assustador o suficiente para continuar na Universidade Monstros. Mike era simpático e boa praça demais para assustar criancinhas. E eu esqueci do filme e fiquei assistindo a você sentir. 

Que a doçura não se perca totalmente nas brechas do tempo. A vida deixa a gente um pouco mais duro e isso é bom pela questão da sobrevivência. Mas se essa capacidade vai embora totalmente e a gente vira um amontoado de ambição e defeitos, não sobra muito que valha a pena compartilhar. Seu jeito de enxergar o mundo é lindo, meu amor. Guarde sempre um pouco disso com você, que hoje é puro bem. Te encontrar ali tão frágil, me fez lembrar de outro momento. 

A gente voltou da piscina e te coloquei no banho. Você me perguntou se axilas era uma palavra em inglês e me pediu para chamar de suvaco mesmo, que era mais legal. Complicar porquê? Enquanto eu enxaguava o sabão dos seus braços e morria de rir, você me olhou de um jeito tão bonito, bem no fundo do olho. "Tia, você me ama. Sabe como eu sei? Porque você cuida de mim igual à minha mãe". E meu riso mudou, porque achei fantástico. Apesar de parecer tão óbvio, não era. Eu quis chorar, porque percebi que você já tinha uma ideia linda do que era amor.

Amar, aliás, é com você mesmo. Me contou todo orgulhoso que o veterinário disse que você salvou uma vida. "Peguei o gatinho, que tava cheio de pereba, tremendo na rua. Dei leite e comida. O médico disse que ele ia morrer. Agora tenho dois dois filhos (era a segunda vez que você adotava um bichinho)". A história te rendeu uma semana de pereba de gato, mas você nem se importou. Estava muito feliz por ser um salvador.
Sempre cheio de dúvidas, em uma tarde dessas, você quis saber porque alguns são negros e outros brancos. Te contei que a gente é um pouco de cada um, aqui no Brasil, inclusive você, com seus olhos verdes e pele cor de leite. Porque um adulto da TV disse algo ruim sobre "gay"? O que tem na Disney? Quem foram os Beatles? Vamos cantar Hey, Jude?

Outro dia, você fez um desenho para mim. Eu e você não tínhamos pescoço, nem proporções humanas. Aquele é um dos meus retratos preferidos, um dos mais fiéis, de mim. Meio torta, faltando um monte de coisa, diferente e com um sorriso tão grande, mas tão grande, que quase não cabia no papel. Meu sorriso bobo é um reflexo da sua presença que, sem qualquer pretensão, revela o melhor de cada dia comum.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Janelas e eu



A gente cresce com medo do escuro, conhece um certo bicho-papão, o homem do saco, o eterno temor de não conseguir, de perder os pais ou de não achar o rumo. E aprende que tudo que faz mal vem de fora: morte, doença, ruindade. Não me lembro do momento exato em que tive consciência de que todo mundo morria. Mas poderia descrever o que senti ao saber que não era só o bandido, o ataque do coração ou o acidente de carro que tinham poder levar alguém de mim: às vezes as pessoas morriam pelas próprias mãos. Não queriam mais existir. Devia ter 10 ou 12 anos, quando me falaram sobre um garoto da escola, bonito, mais velho e aparentemente feliz, que havia pulado da janela de casa. A rua ficou interditada durante horas e o ar ficou pesado.


Durante dias, encarei, meio que de rabo de olho, as janelas da minha casa, tão feliz e arrumada, enquanto me perguntava: porquê? Se ele fez, eu posso querer fazer, algum dia? Jamais quis. Desde então, nunca mais olhei para uma janela sem grades sem lembrar do menino que eu não conheci, mas sobre o qual sabia o suficiente para não esquecê-lo. A menina que andava de metrô e vendia doces na faculdade veio me lembrar, anos mais tarde, o barulho perturbador que é saber-se capaz de tirar a própria vida. Falava com todo mundo, era gentil e sempre tinha bombom caseiro para oferecer. Numa segunda-feira, ela não apareceu. Nem depois. Virou assunto e ganhou atenção até de quem nunca pensava nela ou na morte, que agora eram uma só.


Uma mulher ligou para a imobiliária e pediu as chaves de um belo apartamento, no Plano Piloto. Visitou-o sozinha e, por fim, jogou-se da sacada, manchando a calçada de desespero. Construiu a história do fim, como se fosse roteiro de filme. Eu quis saber quem ela era. Dias passaram, esqueci. Ontem, avistei a van do IML, pela janela do carro. Tinha muita gente ao redor, uma fita amarela e preta para isolar e o jardim de um bloco da Asa Sul não parecia mais tão florido. No prédio ao lado, o porteiro comentava: "Uma moça pulou. Tão bonita, nova. Pulou sem nada de roupa. Só podia tá doente". E cada palavra tinha o peso do mundo. E os olhos dele procuravam um ponto para fixar, mas não achavam.


No mesmo dia, havia combinado de assistir Elena. Documentário feito pela irmã da personagem que dá nome ao filme. A sinopse vendia um relato da trajetória da jovem que sonhava ser atriz, em Nova York. Gabriela de Almeida já tinha avisado que o filme era sensível, emocional, delicado. Fui já sabendo o final: Elena cometia suicídio, antes de conseguir o que tanto queria. A irmã, Petra (atriz e diretora), refazia os passos da outra, em busca de compreensão (era o que eu esperava).


Saber como termina não faz de Elena previsível. Petra usou imagens da vida real para contar uma história real (sim, a essência do documentário). Elena ganhou uma câmera no início da adolescência e filmava seus dias. Dançava o tempo todo. Não uma dança boba de menina. Tinha movimentos elegantes, dramáticos. Mudava o olhar quando via-se observada. Em outras horas, transparecia uma tristeza delicada, era talentosa, forte, determinada e cheia de vontades que não cabiam nela ou numa casa. Conversava com a mãe, como se estivessem a sós.


O sotaque mineiro, macio, ajuda a criar intimidade com Elena, Petra (que nas imagens antigas aparece no colo de Elena, ainda bebê) e com o restante da família, que não se intimidava com a gravação e soava feliz. Mais tarde, em Nova York, Elena manda fitas para a família, com sua voz gravada, cheias de relatos dos dias no exterior. Elena dizia ter vergonha da própria letra, por isso não escrevia cartas. A justificativa mais parece esconderijo para a saudade de casa, um jeito de não admitir a carência, o desejo de conversar. Ouvir a voz de Elena, tão cheia de poesia e frustração, machuca. Petra também faz doer, enquanto caminha pelas ruas nas quais a irmã pisou e narra a própria história. A ideia de refazer o caminho não era sobre listar os motivos que levaram Elena àquela atitude. O resultado final é uma conversa entre as duas irmãs, que se despediram cedo, um contato dos mais íntimos entre vidas que se complementam.


Quando os créditos correram sobre a tela e luz acendeu-se, lembrei da moça da Asa Sul, do garoto da escola, da mulher da imobiliária e de mim, com medo de que alguém pegasse meu pensamento, de ser considerada louca, depressiva, só de imaginar o assunto. Aquela angústia, tão bem retratada na tela, caminhou para longe. Essa noite, olhei pela janela sem medo de encará-la como convite. Enxerguei a cidade, as casas de luzes apagadas, os mendigos na rua e, lá no fim do céu escuro, tudo que falta fazer. Eu nunca quis tanto ficar.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

história de amores

Bastava um garoto se aproximar para que Ana sentisse o estômago sair pela boca. Os pés queriam ficar, mas corriam. Até que, numa bela noite de dezembro, em um banco de praça, numa cidade de interior, com direito a lua, coreto e sorvete, aconteceu: o rapaz, perfumado, moreno, magricela, com camisa social folgada se aproximou. O beijo dele tinha gosto de cachorro-quente. Diante da preocupação em segurar o coração dentro do peito, não fez diferença. Ela tinha 13 anos. Ele 16. Trocaram cartas depois. Ele mandou foto com dedicatória: "Te amo e vou te esperar. Casa comigo? Saudade existe para quem sabe ter. Minha vida cigana me afastou de você". Ela riu, achava a música brega, porém quis saber como era o amor. Ele se casou, mas não com ela. Ela chorou até os olhos doerem. Escutou More than words 874 vezes, partiu para My All, amava Mariah, e terminou com Djavan. Acordou na varanda, com olhos já secos. Depois esqueceu.

Uma bela manhã, no ginásio do colégio, Julia foi pedida em namoro pela primeira vez. Um menino japa, bonito, olhos puxados e inocentes, planejou toda a cena, ajoelhou-se, como devia ter visto em algum filme de amor. Ele era BV (boca virgem, era preciso abreviar as palavras, para diminuir o peso da não-experiência). Ele pediu que ficassem no selinho. Não se sentia seguro para a intimidade de um beijo de língua. Tinha medo de tremer da cabeça aos pés, não fazia ideia de como fazê-lo e confidenciou a ela o que ninguém naquela idade admitia: era todo insegurança. Ela, que nasceu com a paciência pelo avesso, aguardou uma semana. Mãos dadas não faziam o coração disparar. Estava condenada, uma viciada em emoção. Ganhou rosas vermelhas do menino de olhos transparentes e alma doce, que pedia mais prazo. Jogou-as num container, pois tinha medo do que o pai diria. Transformou em lixo os sentimentos de quem se apaixonou pela menina errada. (ainda hoje, Julia torce, do fundo do coração, para que ele não tenha desistido dos beijos de língua por conta do episódio desastrado).

O coração simulou amores, por vício. Chorava hoje, amanhã sambava despreocupado dentro do peito, mais uma vez. Até que alguém inundou de verdade aquela encenação e  fez com que Marina morresse um pouco a cada vez que se descobria exposta. A princípio, parecia doente: o corpo ardia, a barriga revirava e o coração doía uma dor literal. Estava apaixonada. Vagava por ruas escuras, ligava repetidas vezes, acreditava nas maiores mentiras e, enfim, sofria com razão. Ela não sabia, mas era possível sobreviver ao primeiro amor da vida real, o que afeta o juízo, a carne, o osso e o fígado. Foi como ser derretida, despejada em uma nova forma, parida outra vez.

Ele ameaçava matar-se, quando Taís falava em ir embora. E ela foi, porque não aceitaria ser "razão de viver". E ele viveu, embora não sem ajuda. Ela frequentava a igreja, mais por imposição do que por vontade. No lugar mais inapropriado, inventou mais um desejo. O amor agora tinha olhos verdes, cabelos pretos, sobrancelhas grossas e bochechas quase rosadas. Uma pintura que havia pulado da tela. Ela roubou o primeiro beijo e assinou a própria sentença: condenada ao amor. Escapavam das aulas do padre sobre castidade, para pecar logo ao lado. Ela amava o pecado e o pecador. Eram seres de outra época, num mundo atual. Personagens de um filme com legenda mal sincronizada. Não tinham bagagem para encarar qualquer viagem. Ficaram pelo meio da estrada, exauridos de tanto se perder.

Amanda via charme nos cabelos oleosos dele, na habilidade das mãos, no jeito de tocar bateria, na forma como olhava para ela, tão capaz de convencê-la a qualquer coisa. Ele também havia terminado um longo namoro. "Não quero nada que você não possa me dar", ela avisou. Mas sucumbiu meses depois, por ciúmes do fantasma da ex. Saiu de cena e deu lugar à protagonista. Saboreou algo que, até então, só conhecia de nome: o pé na bunda. Ficou com o rock´n´roll como lembrança. Não poderia ter sido melhor.

Talita achava que tudo era uma grande festa estranha com gente esquisita. Nada se mostrou tão esquisito assim, depois de uns tragos. As duas conversavam no sofá, ela e a amiga, que se deitou em seu colo e parecia ter nascido para repousar ali. A amiga confidenciava coisas íntimas, talvez fosse influência da luz, quem sabe a cerveja além da conta. Não gostava de garotos, mas não queria assustá-la, só avisar que era diferente. Talita, que só olhava para eles, começou a reparar no nariz da outra, ali deitada, falando sobre mulheres e complicações. Era arrebitado, convidativo a um beijo de esquimó. Reparou que os olhos dela eram castanhos. Pequenos, escondiam sua cor, no dia a dia.

Ao fim da noite, haviam entregado tudo. De que importaria o frio do chão se o corpo já não se resume a mãos, bocas, pernas, braços e se tornara simplesmente calor? Mais animal, menos gente. Um beijo mais fundo e a cabeça vira terreno vazio. Ela, a menina dos olhos que brincavam de esconde-esconde, se fez senhora da terra, tomou-lhe o ar, as rédeas, o autoconhecimento, as noções sobre a vida, sobre a poesia e apresentou-lhe uma nova forma de doer: a dor de querer sem a noção do quanto. Nada, nem mesmo o olhar de reprovação, era capaz de competir com o amor que a corroía dos pés à cabeça, que a fazia dançar sem música, cantar sem refrão e, como um bobo no ginásio da escola, satisfazer todas as vontades da amada, que só queria o que não tinha: mais um motivo para sofrer, bater carros contra postes, só para checar se estava viva. De tanto corroer, o amor despedaçou-a. Desmoronou sobre elas. Cansado, desistiu de existir. Suicidou-se.

Daniel sempre chamara sua atenção. Conhecia suas histórias, as desventuras, defeitos, o amor recém-partido e até seu desejo de morrer. Parecia mais inteligente e mais interessante que todos os outros. A fazia pensar em casamento, em crianças, em morar na mesma casa e em tudo aquilo que tinha sentido, apesar de não ter. Ela não sabia da onde os pensamentos vinham, mas ali estavam eles, dispostos a descarrilar um trem. Devia mesmo ter uma queda por olhos miúdos. Chamou-o para sair, tomar uma cerveja. Até que ele aceitou. O amor que começa num banheiro de bar não pode terminar bem, diziam. Há muito álcool, bactérias, fluidos e impulsos envolvidos, ponderavam.

Luisa afastou-se. Daniel insistiu. Ele tinha namorada, mas garantia que estava no fim. Soava mal, mas sentia bem. E quem resiste ao chamado dos problemas anunciados? O amor correu sozinho, feito águas de março. Desmentiu os pessimistas. Mandou a moral passear. Encontrou e desencontrou. Nasceu e morreu, para ressuscitar diferente depois. Ensinou que somos um resumo de histórias, amontoado de sentir e não sentir. Somos todos resultado da soma das horas. Dos quereres e não quereres. O amor construiu a própria casa, para resistir ao tempo e ao temporal. O coração, por fim, encontrou onde morar.

terça-feira, 21 de maio de 2013

conversa de almas

Chegar à sua casa e não ser recebida pelo som daquela inconfundível risada funda de sinceridade, acompanhada de um gesto singelo e lindo, quando a senhora juntava as mãos como se fosse rezar ao nos ver, foi a pior parte, dona Antônia. Meus pés andaram sozinhos rumo ao quintal da casa onde eu só havia sido triste uma vez na vida, quando o vô deixou a gente para começar uma nova etapa da existência. As rosas do jardim estavam ali, vibrantes como sempre. Elas me lembraram sua presença de espírito, que nunca me decepcionava. Lembrei de você com as mãos na terra, espalhando as sementes das flores. Quem iria dizer que as pétalas repousariam sobre suas mãos já sem movimento e deixariam que a vida delas se esvaísse junto da sua. Ajudei a colocá-las ali, sobre seus dedos, que foram obrigados a ficaram quietos, depois de 93 anos de cuidados, remédios retirados das plantas, ajuda a qualquer pessoa, chás deliciosos e broas que nunca vou esquecer. Quantas vezes as pontas deles percorreram as contas dos terços e rosários, que sempre lhe faziam companhia?

Vó, você sempre tinha uma palavra alegre para dizer. Seus olhos turvos de catarata, mas tão aptos a enxergar o melhor das pessoas, me fascinaram desde sempre. Quando você ria, meu coração rasgava-se em bem-estar também. Até quando eu nem entendia o porquê. E eu só conseguia me lembrar disso, mesmo no cenário mais triste possível, quando tudo parecia ter tido fim. Mas só parecia, vó. Eu sei e agora a senhora também sabe. Eu gosto de pensar que te receberam no céu, como esperado, rodeada por Jesus e Nossa Senhora, aos quais a senhora dedicou tantos momentos de conversa e a quem confiava a família. A sua reza me encheu de energia boa e alimentou minha coragem. O olho humano não vê o amor em formas e cores. Mesmo assim, ele viaja pelo ar e nos alcança, atravessa o tempo e até a barreira dos mundos.

Hoje, enquanto velavam seu corpo durante toda a noite, na sala da sua casa, tão limpa e organizada como sempre, como manda a tradição e sei que você faria questão, ouvi muitos dizerem: "Não tinha quem não gostasse da dona Fiinha". Aliás, que apelido simpático a senhora tem. Foi difícil mesmo encontrar alguém que contrariasse essa afirmação. Mas acho que consegui. Uma vez, você me chamou num cantinho, para me trazer para perto de você não só fisicamente, mas para juntar nossas personalidades, semelhantes e diferentes ao mesmo tempo. A senhora, de doçura exaltada a todo momento, me contou um "causo". Lembrou daquele tempo em que uma vizinha, falsa amiga, vivia a rondar sua casa para ver o vô. 

Cansada das investidas da sirigaita, como a descreveu, a senhora pediu que ela esperasse um momento. Andou até o portão e amarrou o cavalo no qual a visita indesejada havia chegado. Tudo isso para ela não fugir. Voltou para dentro de casa, pegou a espingarda e a surpreendeu. Apontou para ela e ameaçou atirar, caso a dona se atravesse a inventar qualquer motivo para visitar seu inviolável lar novamente, em busca de uma aventura com o seu tão amado João. Ninguém se feriu e a moça não voltou a aparecer, é claro. A senhora gargalhava ao lembrar, sem culpa ou pudor, de quando ela tentou tocar o cavalo e ele não andava. Devia ser a milésima vez que contava esse "segredo" a alguém da família.

Não sei por onde a sirigaita anda, vó, mas caso ela já tenha partido, ousaria dizer que ela vai evitar o encontro, mesmo em terras distantes. Dona Antônia, saber das suas peripécias, das suas mil faces, só me faz amá-la mais. Seu corpo era pequeno demais para caber o mundo. Mesmo assim, a senhora não desistia de tentar. As pernas já lhe traíam e a senhora se recusava a obedecê-las, tornando-se refém do tempo. Caiu várias vezes, até que não mais se levantou. Quis beber água sozinha, ir para a igreja sem pedir ajuda para chegar lá e até desceu escadas no meio da noite, com passinhos ensaiados para não acordar ninguém. Não consigo enxergar um traço de fraqueza em seus atos, nem sequer quando penso nos poucos quilos e no biotipo esbelto que exibiu durante toda a vida. Você é toda força e poesia, Dona Antônia.

Não usarei o verbo do passado, enquanto me for permitido. É como eu te disse quando nos despedimos na frente de tantas pessoas que te amavam como eu, com a senhora ali de olhos fechados e semblante tranquilo que me acalmava: a minha avó jamais vai morrer. Meus cabelos são seus. Os dentes também. Alguns dizem que as mãos saíram a cópia das suas e um pedaço do gênio difícil também. O nosso pertencimento vai tão além do reflexo que vejo no espelho.

Todas as despesas do funeral (não só as do seu como as do meu avô) já estavam pagas. Foi o vô quem deixou tudo acertado, inclusive o lanche das visitas. Ele queria partir sem dívidas e, como sempre, não se esqueceu de você, que apoiou a atitude honrada. Meu coração se inundou de admiração. Ser independente é uma questão de dignidade. Obrigada pela lição final. Eu te enxergo com toda minha alma, vó, e alma não é como corpo, que morre e não deixa sinal. 

A senhora sempre tinha uma Bíblia por perto. Eu levei a minha, um livro de poesia, do seu conterrâneo, Drummond, para ter umas palavras bonitas para lhe dizer.


"Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança. 
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação"

Nenhum outro desfecho cairia tão bem a quem levou a vida com a delicadeza que só as obras genuínas carregam em si. É preciso aceitar a separação. Nos encontraremos em fotos, palavras e nas histórias engraçadas e sábias deixadas para as próximas gerações. Nos veremos no simples ato de pentear meus cabelos a cada manhã, enquanto meu peito se alegrar ao reconhecer sua existência fragmentada em todos nós. Voa, dona Fiinha, com seu jeito de passarinho.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Pelo direito de ofender

A Câmara Legislativa tem o seu próprio Marco Feliciano! "Vice Presidente da Frente Parlamentar, Evandro Garla, levanta Exercito Evangélico contra Decreto do Governador". A notícia é sobre a revogação do decreto que previa punições a órgãos públicos locais e estabelecimentos comerciais que cometessem atos homofóbicos. O decreto, entre outras coisas, puniria com mais rigor o empresário que: expulsasse clientes do seu restaurante por homofobia ou um servidor público em serviço (aquele que é pago com dinheiro meu e seu, de hétero e de gay) que cometesse violência física ou psicológica contra alguém, baseado na sexualidade. Demorou 13 anos para ser publicado e menos de 24 horas para ser jogado no lixo.

O decreto não proibia ninguém de pensar o que quisesse, nem mesmo de ser homofóbico dentro da igreja, em casa, na escola, na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. "Onde é que já se viu o dono da pizzaria não poder chamar de bichinha seus clientes? Ele pode escolher quem senta à mesa do seu restaurante. Devia até colocar uma placa tipo as de proibido estacionar, com dois homens se beijando e um x em cima. Esse mundo ta muito politicamente correto mesmo. Daqui uns dias vão me proibir de ser hétero", alguns disseram, muito preocupados com o futuro da família tradicional. Aquela formada por um homem e uma mulher (fiéis um ao outro sempre!), abençoada e perfeita, criadora de lindas crianças honestas, saudáveis, felizes e, é claro, hétero. Dessas famílias não saem ladrões, traficantes, "vadias", golpistas e corruptos. Esses foram criados por pais gays ou sem religião, é claro. Nossa sociedade perfeita está ameaçada pela mudança dessa estrutura linda de homem/mulher, que nos garante andar tranquilos pelas ruas, sem temer que algum filho de gay sem Deus no coração roube a nossa carteira ou nos dê um tiro no meio da cara. É muito chato não poder chamar ninguém de bicha e nem poder gastigá-lo aos murros por amar quem eu não autorizei.

Homofóbicos: vocês estão livres para amaldiçoar, mandar para o inferno e condenar à perdição quem vocês bem entenderem! Nenhuma lei vai regular quem entra ou não pelas portas do céu ou do inferno. Vocês não terão que dividir o paraíso com quem faz sexo antes de casar, com quem se separa do marido, muito menos com quem se deitou homem com homem ou mulher com mulher. Podem respirar aliviados. O céu é de vocês e ninguém tasca. A lei desejava apenas orientar uma classe "x" a pensar duas vezes antes de humilhar um cidadão comum. É triste precisar desse tipo de lei, mas a sociedade precisa, com urgência, frear essa violência (palavra também é arma). A bancada evangélica pressionou, dizem por aí, e o governador teria voltado atrás para satisfazê-la. Chamaram a lei de "lei da mordaça" e espernearam. Esse exército luta pelo direito de desumanizar, pela liberdade de ofender, perturbar e excluir, em nome de Deus. É uma causa muito bonita e justa para ser adotada por um parlamentar (que também recebe dinheiro de gay e de hétero, sem perguntar da onde veio). Melhor que lutar por educação de qualidade ou saúde pública digna.

Imagino a luta dos racistas para impedir que esse tipo de discriminação virasse crime. Devem ter achado um grande absurdo serem obrigados a engolir o que pensavam sobre os negros. Devem até ter desenvolvido um câncer por não poder se expressar. Usaram a Bíblia como advogada, previram a destruição das famílias inter-raciais e tudo mais. Ousaria dizer que eles (racistas) superaram o trauma de não poder dizer o que pensavam, em nome do bem estar de outros seres humanos. Fazer do racismo um crime não transformou nenhum racista em pessoa de bem. Mas certamente impediu muitas ofensas e agressões gratuitas. Uma canetada não é capaz de mudar o coração das pessoas, de fazê-las mais tolerantes com as formas de amor, mas ajudaria a segurar a boca de quem fala, mesmo quando não lhe cabe meter a colher.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Leo

Hoje, seus pés ficam para fora do sofá, sobram quando você apoia a cabeça no meu colo e pede para que eu passe as pontas dos dedos sobre o seu rosto, bem devagar, quase sem encostar, desenhando linhas imaginárias por cima dos seus traços, tão parecidos com os meus. Era o que eu costumava fazer, quando você ainda nem sabia falar e se recusava a dormir. Você chorava e todo mundo achava que era cólica, fome ou qualquer necessidade urgente. A emergência era o carinho, um mimo suave, que te tranquilizava e logo fazia adormecer. Você sempre gostou do meu colo. Queria me morder só para coçar a gengiva, babava em mim e ria, ria muito, e eu correspondia, porque me sentia como um parque de diversão. E eu comecei a amar você, sem ter ideia de que tinha descoberto o que faz a vida valer a pena.

Mal sabia como eram feitos os bebês quando você chegou à casa, no colo da nossa mãe. Passava horas te estudando com os olhos, como quem deseja se apresentar. "Oi, eu sou sua irmã mais velha e vou cuidar de você". Você era pequeno, mas já ocupava um espaço enorme em mim. Observava as dobras da sua mão, a fragilidade das suas unhas e as formas do seu pé gorducho. Sem ninguém pedir, aprendi a fazer massagem, esquentar a mamadeira no ponto certo, cantar para te entreter e nunca mais fui sozinha, desde o 7 de maio em que você nasceu. Nunca mais pensei só em mim. Era impossível experimentar um doce novo sem imaginar: "O Leo vai gostar."

E por falar em doce, nunca se esqueça: fui eu quem te apresentou o chocolate. Se existe um crédito que eu gostaria de ter no filme da sua vida, caso você vire um rock star ou algum outro tipo de cara bem famoso, seria esse. Você já estava crescido e pronto para a experiência. Me esperava acordado, até tarde da noite, encolhidinho na cama para ninguém perceber, para ganhar bombom caseiro, que uma moça vendia lá na porta do Ceub. Às vezes, eu deixava você comer à noite mesmo. Desde cedo, a gente tinha segredos. E eu tenho medo que algum dia você encontre uma amiga melhor do que eu. Mas vou superar.

Eu fiquei adolescente e você um rapaz pequeno, esperto além da conta. Chorava quando me via pronta para sair. Muitas vezes, deitei na cama e fiz você dormir antes de abrir a porta e deixar um pouco do meu coração para trás. Rejeitei convites só para passar a tarde com você. Para a gente dançar juntinho, com seus pés em cima dos meus e seus braços agarrados à minha cintura, no meio da sala de casa, que crescia aos nossos olhos e virava um baile inteiro. Você cresceu e agora tem vergonha de dançar. Eu também tinha, na sua idade, e logo vai passar. Agora, é você quem quer sair, namorar, fazer amigos e ser aceito.

Tem muita coisa que eu queria te ensinar. O problema é que ainda sei pouco. Se pudesse, daria o mundo explicado com anotações de roda pé e cheio de atalhos para você fugir do erro, da dor. Mas não teria a menor graça e no final você não seria o cara legal que tenho certeza que você será. Não porque o amor me cegue, meu coração é crítico. Irremediável, tende a notar os defeitos de quem vive nele. Enxergar as falhas também é um jeito de educar. Quando pensar em mim, você pode até me achar dura, rígida e mandona. E eu sou (ou fui). Mas a vida é agridoce e a gente precisa acompanhar.

Algumas poucas coisas eu posso te garantir. O mundo não tem pena das nossas fraquezas, para ele a culpa é sempre da gente e tudo tem consequência. Saber isso é bom porque evita lamentação. Vai demorar para você perceber, mas qualquer coisa pode acontecer com você: ser assaltado na rua, ser enganado pelos "amigos", ficar viciado, mesmo querendo "só experimentar", pegar uma doença, porque não usou camisinha ou ter um filho antes da hora, simplesmente porque é um tanto inconsequente, como todo jovem. Bem vindo ao mundo dos quase adultos e tente não estragar tudo.

Ainda que o mundo seja um lugar bem esquisito, não perca seu tempo sendo negativo, reclamando das pessoas ao seu redor e de como elas não ligam para você. Todo mundo está ocupado consigo mesmo. Supere. Encontre um jeito de ajudar, sempre que puder. Seja útil, pois não há nada mais triste do que uma existência desperdiçada. Você não é e nem nunca será melhor do que ninguém. Respeite as diferenças entre as pessoas, ame quem você quiser, sem medo, vista o que escolher e, por favor, não tente ser "todo mundo". Você é maior do que esse tipo de atitude. Percebo pelo entusiasmo do seu olhar diante de algo novo. Não perca esse talento que tem de se encantar.

Não mate seus sonhos. Siga uma profissão que te dê prazer e que não faça de você um cara que lamenta todas as segundas-feiras. Uns dias serão piores, sinta tudo que tiver pra sentir. Vai ser difícil, mas não aceite o manual de instruções da sociedade. Não, você não precisa passar em um concurso público (até você ficar adulto, isso vai ser fora de moda, eu espero). Você pode ser artista, pintor, músico, engenheiro, médico, surfista e até treinador de Pokemon, como me confidenciou certa vez que adoraria ser. Ser você é a coisa mais linda do mundo. Não jogue isso fora, nem troque por dinheiro e estabilidade. Dinheiro é bom. Foi ele quem nos levou ao show do Paul, que você chamou de "a melhor coisa eu já fiz na minha vida". Nenhum centavo disso, porém, veio de frustração e comodismo. Trabalho e paixão fazem uma dupla fantástica. Pode apostar.

Nossa mãe não vai gostar desse papo, mas vai uma dica: não espere muita coisa do universo, das forças sobrenaturais ou da religião. Faça você mesmo, tenha nobreza de espírito para entender que suas decisões cabem a você e só. Deus (e fique livre pra construí-lo e para falar com ele à sua maneira e somente se você quiser) gosta de todo mundo e não é esse cara preconceituoso que tentam pintar. Ele também não vai fazer mais por você do que você mesmo. Nada de bom vai acontecer se você não se esforçar (até quando a gente faz de tudo a coisa pode dar errado, mas não esquenta não, sempre passa).

Leia por prazer. Leia porque isso te faz mais inteligente, mais sensível, mais bonito e mais parte do mundo que te cerca. O mundo, aliás, é bem grande. Viaje sempre que puder. Mesmo sem grana ou sem destino: vá. Não se prenda a um pedaço se você pode ter o todo. Quando você encontrar alguém para dividir essas aventuras, por favor, trate essa pessoa como você gostaria de ser tratado. Ninguém perde nada por ser leal e honesto, embora exista tanta gente cruel com o sentimento dos outros. Talvez eu pareça uma boba com tudo isso. Quem sabe, no futuro, quando você reler esse bla bla bla, as pessoas já tenham deixado de achar que ser bom é brega.

Eu poderia simplesmente dizer "feliz aniversário". Mas quis ir mais longe. Você completa mais um ano, eu fico um pouco mais sensível e orgulhosa de te ver crescer. Algumas coisas que eu digo você só vai entender lá na frente. A gente nunca sabe até onde vai estar junto. Na minha idade, a gente começa a ver que as pessoas não duram para sempre. Os pais dos outros começam a morrer, até os jovens, de uma hora para outra, somem sem deixar recado. Morte nunca foi assunto permitido na nossa casa. Mas ela não é má nem exclusiva. Por favor, aprenda a lidar com ela o quanto antes, sem tanta neura.

O tempo não precisa de mim ou de você para seguir. Lá na frente, nós não existiremos como hoje e tudo vai continuar bem. Nossa casa talvez seja de outras pessoas, a escola por onde você passou talvez mude de nome e essas palavras, quem sabe, serão lidas por alguém que hoje ainda nem existe. Leo, tudo que sobrevive é amor. Outras irmãs farão carinho na ponta do nariz, outros meninos pedirão colo no escuro, em um quarto de dormir. Somos todos eles.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

perceber a felicidade

uma vez me disseram que certas pessoas sofrem até quando são felizes. é uma daquelas frases que a gente escuta e repete dentro da cabeça depois, como se tivesse apertado um botão. quem disse foi um centenário, o que deu ainda mais credibilidade. o estado de insatisfação plena é um monstro de dentes afiados, folgado, corrosivo, que se instala no menor canto da alma, se a gente permitir, e se alimenta do que temos. a vida é linda. não é sempre, mas é quando dá para ser. e basta. às vezes é preciso dançar na tempestade, chorar no sol ou apenas dormir um pouco mais.

O hoje acaba, feliz ou não. Não dá para se escravizar, se acorrentar  a essa condição. Falam muito sobre a perseguição da felicidade. A gente se ocupa tanto em procurar que corre o risco de não ver quando achar. Do que adianta persegui-la, se você não consegue percebê-la, vivê-la? Olhar a própria história com olhos ávidos é sabedoria. Saborear o momento feliz, se entregar a ele e guardar as sobras para depois também.

Dá para ser feliz durante o Jornal Nacional, quando passa uma criança sorrindo fundo por conta de um banho de mar. É possível ser feliz dentro do ônibus, quando toca sua música preferida. Quando se descobre um lugar novo, ainda que seja o velho, visto com olhos renovados. Se alguém te traz um chocolate no meio da tarde. No dia em que você pôde ajudar um amigo que precisava de um colo, carinho, palavra. Quando você chora de emoção. E até, simplesmente, quando se deita na cama e entende que nada de mau te aconteceu e você ganhou mais um dia por aqui.

É questão de não apagar o brilho das lembranças, aprender sempre que possível, sofrer o inevitável, secar o rosto e caminhar enquanto existir estrada.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

fantasmas e eu

Hoje percebi que ainda tenho medo do escuro

Que acredito nos monstros

Tão reais quanto os armários que habitam

Doente de imaginar

Que vejo gente onde não tem

Que sinto amor onde não há

Que forjo força

Respiro fé e devolvo desespero à atmosfera

E sofro porque pensei

E pensei

Vi a vida e me assustei

Com o carro que passou na rua

A criança que chorou na noite

Era minha e não era.

Chorava por mim e eu por ela

Pouco importam as paredes, as portas, janelas

O que está do lado de fora me inunda quando quer

Fecho portas que só eu poderia abrir

Depois esqueço onde deixei a chave