sábado, 24 de agosto de 2013

condições para ser humano

Para erguer uma casa é preciso tijolo, cimento, piso, porta, ferro, às vezes madeira ou só papelão. Um tanto de desejo constrói um ser humano: sem argamassa, sem dinheiro, sem loja, sem alvará. A gente nasce gente, já chega ao mundo filho, quem sabe até irmão. Não importa do que nossa casa é feita. Mas desaba-se como ser humano diante do olhar do outro, quando passa o tempo e a visão fica doente. A pessoa nasce todo dia, enquanto é descoberta por quem vive ao redor. 


Há aqueles que nascem ao contrário, diariamente, logo, morrem segundo a segundo. Tornam-se invisíveis ao se misturar ao asfalto e fazer dele cama, até seu coração queimar em uma noite vermelho-chama. E a gente não sabe quando deixou de existir. Se foi quando o sangue parou de correr ou quando ninguém mais nos via. Sem ter quem chore sua falta, morre-se menos.

Não basta ter pupila, pulmão, neurônio, pele, arrepio, frio, amor, estômago roncador, sorriso, dente estragado, medo, feridas nos pés, braços cansados e uma dose de desajuste. Não basta doer para ser humano. É preciso ter casa com parede, celular, roupa sem furo, mulher sem pelo, filho inteligente, trabalho que paga e duas camadas de verniz, que é para disfarçar a falta de brilho do caminho.


Os três tomaram banho, pentearam os cabelos, comeram comida limpa e vestiram calça jeans lavada pela empregada. Saíram de casa para viver a noite. A ideia de diversão: comprar um litro de gasolina e atear fogo num bicho que dormia, num canto qualquer, depois assisti-lo gritar. O bicho no chão era o homem. Mas os outros bichos, com fósforo na mão e nada no peito, não enxergavam assim. Quem vive despido de casa está nu de humanidade. Quem está à minha frente de olhos fechados, amigo do lixo e parte dele, sem cerimônia com a rua, não é gente como eu, é resto. Portanto, pode queimar.

A menina, acima de qualquer suspeita, alguns diriam, quis se justificar: disse que o bicho havia tentado roubar seu telefone. Logo, merecia morrer queimado e parar de existir, deixar de ser filho, pai, irmão, pessoa, enfim, para o bem da humanidade, dos outros como ela: limpos, honestos, donos de iPhones e de almas nobres. Há quem pense como ela, em toda esquina, e comemore o extermínio de tudo aquilo que "não deu certo": bichos que perturbam nossa paz em busca do nosso dinheiro suado e honesto, eles querem nossos telefones, nossas bolsas, nossos filhos e o uísque que tomamos no fim do dia. Fazem barulho diante dos nossos comércios, espantam gente de bem e deixam sujeira de seus corpos, tão diferentes dos nossos, na frente de nossas portas, que nunca nos guardaram da realidade da qual, inevitavelmente, somos parte.

O fogo faz desaparecer índios que se atreveram a dormir em praças reservadas aos passeios de carrinhos de bebês empurrados pela desigualdade vestidas de branco. Dá fim aos mendigos em Santa Maria, que há anos eram só meninos nos braços de suas mães, gostavam de batata frita e queriam ser jogadores de futebol. O fogo purifica a prata e o ouro, aparece na Bíblia, no circo, no semáforo e nos rituais de magia. A natureza é maior que o homem. É capaz de renascer, depois das chamas. Que nossa humanidade também seja fênix.

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“A ação (...) corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo”

“Seres humanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens”
Hannah Arendt

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