terça-feira, 27 de agosto de 2013

a cura

Ele entrou na sala de aula vestindo uma calça hippie, bata despojada e tênis gastos. Tinha vários livros nas mãos, a barba branca, cheia e não muito curta. Era negro, magro, alto e caminhava com tranquilidade. Entre os alunos, havia toda cor de pele. Todos de família com grana, tinham celular, roupa da moda e cabelo montado no gel. Antes barulhentos, os adolescentes ficaram mudos diante daquela figura, totalmente paralisados. Alguns sentiram medo, era nítido. O homem deixou os livros em cima da mesa de professor e escreveu no quadro: PRECONCEITO.

Assim, conheci Zé Roberto, meu professor de literatura, no ensino médio. A aula daquele dia foi dedicada aos direitos humanos, em especial à igualdade racial. Não teve tom de raiva, de revolta. Era apenas um homem inteligente ensinando um bando de meninos estúpidos sobre o mundo, apresentando um lugar que ia muito além da própria casa e da própria pele. Uma aula sobre a cultura do Brasil e de vários outros países.

Zé conhecia de tudo, do poder dos livros ao olhar de reprovação das pessoas na rua, que atravessavam para o outro lado e seguravam suas bolsas, quando ele se aproximava. Nos anos seguintes, tornou-se amigo dos alunos, dava risadas e dividia histórias. Sem mágoas. Estimulava a turma a montar peças teatrais, baseadas em clássicos da literatura. A viajar na poesia e deixar a cabeça simplesmente pensar e criar. Zé apreciava a criatividade, às vezes até as malandragens disfarçadas de quem havia deixado o ensaio da peça para última hora eram entendidas como ousadia e analisadas como inovação, desde que transmitissem algum prazer e parecesse divertido. Falava sobre drogas e sexo, sempre na posição de educador, porém abertamente, sem hipocrisia, afetação ou com argumentos religiosos.

Naquele tempo, eu só achava o Zé um cara muito legal. Não me incomodava com suas roupas, como alguns colegas, pelo contrário. Achava fascinante, rebelde e jovem, apesar de suspeitar que ele era ainda mais velho do que parecia. Hoje, se o visse por aí, agradeceria por ter me educado e não apenas ensinado a matéria do vestibular, como tantos fizeram. Os cubanos que chegaram hoje ao Brasil foram recebidos como o Zé, vaiados por aprendizes. Os Zés cubanos cumpriram missões em áreas de guerra e sabem lidar com seres humanos. Suas mãos vem curar o corpo de quem há tempos espera por socorro, mas também expõem nossas feridas e o desejo de que elas cicatrizem.

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