a cura
Ele
entrou na sala de aula vestindo uma calça hippie, bata despojada e
tênis gastos. Tinha vários livros nas mãos, a barba branca, cheia e não
muito curta. Era negro, magro, alto e caminhava com tranquilidade. Entre
os alunos, havia toda cor de pele. Todos de família com grana, tinham
celular, roupa da moda e cabelo montado no gel. Antes barulhentos, os
adolescentes ficaram mudos diante daquela figura, totalmente
paralisados. Alguns sentiram medo, era nítido. O homem deixou os livros
em cima da mesa de professor e escreveu no quadro: PRECONCEITO.
Assim, conheci Zé Roberto, meu professor de literatura, no ensino
médio. A aula daquele dia foi dedicada aos direitos humanos, em especial
à igualdade racial. Não teve tom de raiva, de revolta. Era apenas um
homem inteligente ensinando um bando de meninos estúpidos sobre o mundo,
apresentando um lugar que ia muito além da própria casa e da própria
pele. Uma aula sobre a cultura do Brasil e de vários outros países.
Zé conhecia de tudo, do poder dos livros ao olhar de reprovação das
pessoas na rua, que atravessavam para o outro lado e seguravam suas
bolsas, quando ele se aproximava. Nos anos seguintes, tornou-se amigo
dos alunos, dava risadas e dividia histórias. Sem mágoas. Estimulava a
turma a montar peças teatrais, baseadas em clássicos da literatura. A
viajar na poesia e deixar a cabeça simplesmente pensar e criar. Zé
apreciava a criatividade, às vezes até as malandragens disfarçadas de
quem havia deixado o ensaio da peça para última hora eram entendidas
como ousadia e analisadas como inovação, desde que transmitissem algum
prazer e parecesse divertido. Falava sobre drogas e sexo, sempre na
posição de educador, porém abertamente, sem hipocrisia, afetação ou com
argumentos religiosos.
Naquele tempo, eu só achava o Zé um cara
muito legal. Não me incomodava com suas roupas, como alguns colegas,
pelo contrário. Achava fascinante, rebelde e jovem, apesar de suspeitar
que ele era ainda mais velho do que parecia. Hoje, se o visse por aí,
agradeceria por ter me educado e não apenas ensinado a matéria do
vestibular, como tantos fizeram. Os cubanos que chegaram hoje ao Brasil
foram recebidos como o Zé, vaiados por aprendizes. Os Zés cubanos
cumpriram missões em áreas de guerra e sabem lidar com seres humanos.
Suas mãos vem curar o corpo de quem há tempos espera por socorro, mas
também expõem nossas feridas e o desejo de que elas cicatrizem.
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