sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Com os dois pés no passado

Do outro lado da linha, a voz cheia de simpatia forçada me cumprimenta como se fôssemos amigas de infância. A pessoa tenta me convencer sobre uma sugestão de reportagem. Algo revolucionário, que vai mudar a forma como a humanidade se relaciona... ou talvez uma nova técnica de tinta para esconder a calvície feminina? Tudo pensado por um cliente da assessoria de imprensa para a qual ela, a voz, presta serviços. Deseja falar com a chefia, para reforçar a importância da pauta. Pergunta se a editora é uma "do cabelo enroladinho". Respondo que não, eu, repórter, sou a única na equipe com cachos. Nada melhor para reforçar uma amizade de infância, que começou pelo telefone, há dois minutos, do que compartilhar características em comum.

- Minha filha tem o cabelo beeemm enroladinho. O meu é bem lisinho. Ela tem os dois pés na senzala. Eu gosto, mas ela não. Já falei: não adianta lutar contra, tem que aceitar logo.

Nesse momento, a voz finalmente conquistou minha atenção. Deixei todas as atividades de lado, enquanto a afirmação se repetia na minha cabeça: "Ela tem os dois pés na senzala". Algumas palavras paralisam quem as escuta. Passei o email da editora e desliguei. Em silêncio, pensei no que sentiu a moça que vende bilhetes para cinema, em um shopping de Brasília, quando foi agredida por ser negra. Um médico desejava furar a fila, estava atrasado e, diante da negativa da atendente, disse a ela que fosse "pentear orangotangos na África, que era o seu lugar". Não são situações parecidas. Nunca ouvi nada parecido direcionado a mim. Jamais sofri violência tão explícita, nem me senti discriminada. Não sei (na minha pele) o quanto a cor pesa e como pode definir a forma das pessoas tratarem as outras. Minha pele não é negra, porque a genética não quis. Mas parte de mim é.

Não é apenas uma parte de mim, entretanto, que se sente ofendida quando escuto que alguém tem "os dois pés na senzala". Me dói inteira. Se eu ganhasse um real para cada pessoa que acha exagero se ofender, ficaria rica. É sempre exagero, quando não é com você. O racismo, apesar de ser crime inafiançável, desde 1988, ainda é plenamente aceito. Não tem nada demais em falar sobre "cabelo ruim". Elogio é dizer que fulano é um "negão daquele tamanho, mas tão educado" ou que "ela é linda, nem tem traço de negro". Qual é o problema de dizer que alguém tem os dois pés na senzala, se "todo mundo", usa a expressão, tão inofensiva?

Chamar uma mulher de vadia não é normal, só porque "todo mundo" chama. Usar a palavra gay para xingar o amigo não é ok, só porque "todo mundo" faz. Quem é esse todo mundo que não pensa no que diz e ajuda a manter e a reconstruir a opressão? Se a humanidade inteira guiasse seu pensamento com esse tipo de justificativa, o mundo seria escuro, sem eletricidade, porque sempre foi assim, afinal. A escravidão jamais teria sido abolida, graças ao que alguns preferem achar que não é por mal. Ainda teríamos os dois pés nas senzalas e também os braços, a cabeça, a vida e todas as feridas carregadas das idas ao tronco, posicionado na porta do depósito de escravos. Nunca foi por mal, não é mesmo? Elaboraram uma dezena de motivos, entre eles a vontade de Deus, para justificar a servidão.

É a vez do pensamento se livrar das correntes. Se acharmos "ok", se tudo é piada e nenhuma intenção é séria, ignoramos a história e o que ela representa, suas consequências. Racismo não é só quando alguém manda um negro pentear orangotango. É a ideia de que uma "raça" é melhor que a outra, que alguns são bons ou ruins, a depender do tom de pele ou das características físicas. Um apresentador de televisão diz, sem qualquer constrangimento, que mandará desenhar no carro novo que deu a uma telespectadora uma bonequinha do cabelo ruim, que nem o dela. Todos batem palmas. A moça, negra, de black power, agradece emocionada. Um antigo vizinho me encontra na portaria. "O que você fez com seu cabelo? Lembro que ele era bom, porque você fez isso?", disse, ao se referir a uma época de constantes alisamentos, verdadeiras sessões de tortura, com direito a sangue brotando do couro cabeludo.

Ninguém diz que você tem os dentes ruins, a cabeça ruim (a não ser que seja considerado louco) ou olhos ruins. Ninguém diz que você deve apenas aceitar, se conformar, com os olhos azuis que a genética lhe deu. O azul é raro, portanto valorizado. Olho ao redor e vejo: o cabelo cacheado, crespo, é menos comum. Ser raro não é bom? Como sugere a moça que ainda vê o mundo dividido em duas cores, em casa grande e senzala, "aceito" minhas raízes. Amo, sem nenhuma necessidade de auto-afirmação (ultrapassei essa fase há tempos), os cabelos que a natureza me deu. Se pudesse escolher uma resposta para dar à voz ao telefone, diria que não são os meus pés que pertencem ao passado, mas sim certas ideias escravas, aprisionadas em porões de ignorância.

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