terça-feira, 18 de junho de 2013
Janelas e eu
A gente cresce com medo do escuro, conhece um certo bicho-papão, o homem do saco, o eterno temor de não conseguir, de perder os pais ou de não achar o rumo. E aprende que tudo que faz mal vem de fora: morte, doença, ruindade. Não me lembro do momento exato em que tive consciência de que todo mundo morria. Mas poderia descrever o que senti ao saber que não era só o bandido, o ataque do coração ou o acidente de carro que tinham poder levar alguém de mim: às vezes as pessoas morriam pelas próprias mãos. Não queriam mais existir. Devia ter 10 ou 12 anos, quando me falaram sobre um garoto da escola, bonito, mais velho e aparentemente feliz, que havia pulado da janela de casa. A rua ficou interditada durante horas e o ar ficou pesado.
Durante dias, encarei, meio que de rabo de olho, as janelas da minha casa, tão feliz e arrumada, enquanto me perguntava: porquê? Se ele fez, eu posso querer fazer, algum dia? Jamais quis. Desde então, nunca mais olhei para uma janela sem grades sem lembrar do menino que eu não conheci, mas sobre o qual sabia o suficiente para não esquecê-lo. A menina que andava de metrô e vendia doces na faculdade veio me lembrar, anos mais tarde, o barulho perturbador que é saber-se capaz de tirar a própria vida. Falava com todo mundo, era gentil e sempre tinha bombom caseiro para oferecer. Numa segunda-feira, ela não apareceu. Nem depois. Virou assunto e ganhou atenção até de quem nunca pensava nela ou na morte, que agora eram uma só.
Uma mulher ligou para a imobiliária e pediu as chaves de um belo apartamento, no Plano Piloto. Visitou-o sozinha e, por fim, jogou-se da sacada, manchando a calçada de desespero. Construiu a história do fim, como se fosse roteiro de filme. Eu quis saber quem ela era. Dias passaram, esqueci. Ontem, avistei a van do IML, pela janela do carro. Tinha muita gente ao redor, uma fita amarela e preta para isolar e o jardim de um bloco da Asa Sul não parecia mais tão florido. No prédio ao lado, o porteiro comentava: "Uma moça pulou. Tão bonita, nova. Pulou sem nada de roupa. Só podia tá doente". E cada palavra tinha o peso do mundo. E os olhos dele procuravam um ponto para fixar, mas não achavam.
No mesmo dia, havia combinado de assistir Elena. Documentário feito pela irmã da personagem que dá nome ao filme. A sinopse vendia um relato da trajetória da jovem que sonhava ser atriz, em Nova York. Gabriela de Almeida já tinha avisado que o filme era sensível, emocional, delicado. Fui já sabendo o final: Elena cometia suicídio, antes de conseguir o que tanto queria. A irmã, Petra (atriz e diretora), refazia os passos da outra, em busca de compreensão (era o que eu esperava).
Saber como termina não faz de Elena previsível. Petra usou imagens da vida real para contar uma história real (sim, a essência do documentário). Elena ganhou uma câmera no início da adolescência e filmava seus dias. Dançava o tempo todo. Não uma dança boba de menina. Tinha movimentos elegantes, dramáticos. Mudava o olhar quando via-se observada. Em outras horas, transparecia uma tristeza delicada, era talentosa, forte, determinada e cheia de vontades que não cabiam nela ou numa casa. Conversava com a mãe, como se estivessem a sós.
O sotaque mineiro, macio, ajuda a criar intimidade com Elena, Petra (que nas imagens antigas aparece no colo de Elena, ainda bebê) e com o restante da família, que não se intimidava com a gravação e soava feliz. Mais tarde, em Nova York, Elena manda fitas para a família, com sua voz gravada, cheias de relatos dos dias no exterior. Elena dizia ter vergonha da própria letra, por isso não escrevia cartas. A justificativa mais parece esconderijo para a saudade de casa, um jeito de não admitir a carência, o desejo de conversar. Ouvir a voz de Elena, tão cheia de poesia e frustração, machuca. Petra também faz doer, enquanto caminha pelas ruas nas quais a irmã pisou e narra a própria história. A ideia de refazer o caminho não era sobre listar os motivos que levaram Elena àquela atitude. O resultado final é uma conversa entre as duas irmãs, que se despediram cedo, um contato dos mais íntimos entre vidas que se complementam.
Quando os créditos correram sobre a tela e luz acendeu-se, lembrei da moça da Asa Sul, do garoto da escola, da mulher da imobiliária e de mim, com medo de que alguém pegasse meu pensamento, de ser considerada louca, depressiva, só de imaginar o assunto. Aquela angústia, tão bem retratada na tela, caminhou para longe. Essa noite, olhei pela janela sem medo de encará-la como convite. Enxerguei a cidade, as casas de luzes apagadas, os mendigos na rua e, lá no fim do céu escuro, tudo que falta fazer. Eu nunca quis tanto ficar.
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