Bastava um garoto se aproximar para que Ana sentisse o estômago sair pela boca. Os pés queriam ficar, mas corriam. Até que, numa bela noite de dezembro, em um banco de praça, numa cidade de interior, com direito a lua, coreto e sorvete, aconteceu: o rapaz, perfumado, moreno, magricela, com camisa social folgada se aproximou. O beijo dele tinha gosto de cachorro-quente. Diante da preocupação em segurar o coração dentro do peito, não fez diferença. Ela tinha 13 anos. Ele 16. Trocaram cartas depois. Ele mandou foto com dedicatória: "Te amo e vou te esperar. Casa comigo? Saudade existe para quem sabe ter. Minha vida cigana me afastou de você". Ela riu, achava a música brega, porém quis saber como era o amor. Ele se casou, mas não com ela. Ela chorou até os olhos doerem. Escutou More than words 874 vezes, partiu para My All, amava Mariah, e terminou com Djavan. Acordou na varanda, com olhos já secos. Depois esqueceu.
Uma bela manhã, no ginásio do colégio, Julia foi pedida em namoro pela primeira vez. Um menino japa, bonito, olhos puxados e inocentes, planejou toda a cena, ajoelhou-se, como devia ter visto em algum filme de amor. Ele era BV (boca virgem, era preciso abreviar as palavras, para diminuir o peso da não-experiência). Ele pediu que ficassem no selinho. Não se sentia seguro para a intimidade de um beijo de língua. Tinha medo de tremer da cabeça aos pés, não fazia ideia de como fazê-lo e confidenciou a ela o que ninguém naquela idade admitia: era todo insegurança. Ela, que nasceu com a paciência pelo avesso, aguardou uma semana. Mãos dadas não faziam o coração disparar. Estava condenada, uma viciada em emoção. Ganhou rosas vermelhas do menino de olhos transparentes e alma doce, que pedia mais prazo. Jogou-as num container, pois tinha medo do que o pai diria. Transformou em lixo os sentimentos de quem se apaixonou pela menina errada. (ainda hoje, Julia torce, do fundo do coração, para que ele não tenha desistido dos beijos de língua por conta do episódio desastrado).
O coração simulou amores, por vício. Chorava hoje, amanhã sambava despreocupado dentro do peito, mais uma vez. Até que alguém inundou de verdade aquela encenação e fez com que Marina morresse um pouco a cada vez que se descobria exposta. A princípio, parecia doente: o corpo ardia, a barriga revirava e o coração doía uma dor literal. Estava apaixonada. Vagava por ruas escuras, ligava repetidas vezes, acreditava nas maiores mentiras e, enfim, sofria com razão. Ela não sabia, mas era possível sobreviver ao primeiro amor da vida real, o que afeta o juízo, a carne, o osso e o fígado. Foi como ser derretida, despejada em uma nova forma, parida outra vez.
Ele ameaçava matar-se, quando Taís falava em ir embora. E ela foi, porque não aceitaria ser "razão de viver". E ele viveu, embora não sem ajuda. Ela frequentava a igreja, mais por imposição do que por vontade. No lugar mais inapropriado, inventou mais um desejo. O amor agora tinha olhos verdes, cabelos pretos, sobrancelhas grossas e bochechas quase rosadas. Uma pintura que havia pulado da tela. Ela roubou o primeiro beijo e assinou a própria sentença: condenada ao amor. Escapavam das aulas do padre sobre castidade, para pecar logo ao lado. Ela amava o pecado e o pecador. Eram seres de outra época, num mundo atual. Personagens de um filme com legenda mal sincronizada. Não tinham bagagem para encarar qualquer viagem. Ficaram pelo meio da estrada, exauridos de tanto se perder.
Amanda via charme nos cabelos oleosos dele, na habilidade das mãos, no jeito de tocar bateria, na forma como olhava para ela, tão capaz de convencê-la a qualquer coisa. Ele também havia terminado um longo namoro. "Não quero nada que você não possa me dar", ela avisou. Mas sucumbiu meses depois, por ciúmes do fantasma da ex. Saiu de cena e deu lugar à protagonista. Saboreou algo que, até então, só conhecia de nome: o pé na bunda. Ficou com o rock´n´roll como lembrança. Não poderia ter sido melhor.
Talita achava que tudo era uma grande festa estranha com gente esquisita. Nada se mostrou tão esquisito assim, depois de uns tragos. As duas conversavam no sofá, ela e a amiga, que se deitou em seu colo e parecia ter nascido para repousar ali. A amiga confidenciava coisas íntimas, talvez fosse influência da luz, quem sabe a cerveja além da conta. Não gostava de garotos, mas não queria assustá-la, só avisar que era diferente. Talita, que só olhava para eles, começou a reparar no nariz da outra, ali deitada, falando sobre mulheres e complicações. Era arrebitado, convidativo a um beijo de esquimó. Reparou que os olhos dela eram castanhos. Pequenos, escondiam sua cor, no dia a dia.
Ao fim da noite, haviam entregado tudo. De que importaria o frio do chão se o corpo já não se resume a mãos, bocas, pernas, braços e se tornara simplesmente calor? Mais animal, menos gente. Um beijo mais fundo e a cabeça vira terreno vazio. Ela, a menina dos olhos que brincavam de esconde-esconde, se fez senhora da terra, tomou-lhe o ar, as rédeas, o autoconhecimento, as noções sobre a vida, sobre a poesia e apresentou-lhe uma nova forma de doer: a dor de querer sem a noção do quanto. Nada, nem mesmo o olhar de reprovação, era capaz de competir com o amor que a corroía dos pés à cabeça, que a fazia dançar sem música, cantar sem refrão e, como um bobo no ginásio da escola, satisfazer todas as vontades da amada, que só queria o que não tinha: mais um motivo para sofrer, bater carros contra postes, só para checar se estava viva. De tanto corroer, o amor despedaçou-a. Desmoronou sobre elas. Cansado, desistiu de existir. Suicidou-se.
Daniel sempre chamara sua atenção. Conhecia suas histórias, as desventuras, defeitos, o amor recém-partido e até seu desejo de morrer. Parecia mais inteligente e mais interessante que todos os outros. A fazia pensar em casamento, em crianças, em morar na mesma casa e em tudo aquilo que tinha sentido, apesar de não ter. Ela não sabia da onde os pensamentos vinham, mas ali estavam eles, dispostos a descarrilar um trem. Devia mesmo ter uma queda por olhos miúdos. Chamou-o para sair, tomar uma cerveja. Até que ele aceitou. O amor que começa num banheiro de bar não pode terminar bem, diziam. Há muito álcool, bactérias, fluidos e impulsos envolvidos, ponderavam.
Luisa afastou-se. Daniel insistiu. Ele tinha namorada, mas garantia que estava no fim. Soava mal, mas sentia bem. E quem resiste ao chamado dos problemas anunciados? O amor correu sozinho, feito águas de março. Desmentiu os pessimistas. Mandou a moral passear. Encontrou e desencontrou. Nasceu e morreu, para ressuscitar diferente depois. Ensinou que somos um resumo de histórias, amontoado de sentir e não sentir. Somos todos resultado da soma das horas. Dos quereres e não quereres. O amor construiu a própria casa, para resistir ao tempo e ao temporal. O coração, por fim, encontrou onde morar.
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