terça-feira, 21 de maio de 2013

conversa de almas

Chegar à sua casa e não ser recebida pelo som daquela inconfundível risada funda de sinceridade, acompanhada de um gesto singelo e lindo, quando a senhora juntava as mãos como se fosse rezar ao nos ver, foi a pior parte, dona Antônia. Meus pés andaram sozinhos rumo ao quintal da casa onde eu só havia sido triste uma vez na vida, quando o vô deixou a gente para começar uma nova etapa da existência. As rosas do jardim estavam ali, vibrantes como sempre. Elas me lembraram sua presença de espírito, que nunca me decepcionava. Lembrei de você com as mãos na terra, espalhando as sementes das flores. Quem iria dizer que as pétalas repousariam sobre suas mãos já sem movimento e deixariam que a vida delas se esvaísse junto da sua. Ajudei a colocá-las ali, sobre seus dedos, que foram obrigados a ficaram quietos, depois de 93 anos de cuidados, remédios retirados das plantas, ajuda a qualquer pessoa, chás deliciosos e broas que nunca vou esquecer. Quantas vezes as pontas deles percorreram as contas dos terços e rosários, que sempre lhe faziam companhia?

Vó, você sempre tinha uma palavra alegre para dizer. Seus olhos turvos de catarata, mas tão aptos a enxergar o melhor das pessoas, me fascinaram desde sempre. Quando você ria, meu coração rasgava-se em bem-estar também. Até quando eu nem entendia o porquê. E eu só conseguia me lembrar disso, mesmo no cenário mais triste possível, quando tudo parecia ter tido fim. Mas só parecia, vó. Eu sei e agora a senhora também sabe. Eu gosto de pensar que te receberam no céu, como esperado, rodeada por Jesus e Nossa Senhora, aos quais a senhora dedicou tantos momentos de conversa e a quem confiava a família. A sua reza me encheu de energia boa e alimentou minha coragem. O olho humano não vê o amor em formas e cores. Mesmo assim, ele viaja pelo ar e nos alcança, atravessa o tempo e até a barreira dos mundos.

Hoje, enquanto velavam seu corpo durante toda a noite, na sala da sua casa, tão limpa e organizada como sempre, como manda a tradição e sei que você faria questão, ouvi muitos dizerem: "Não tinha quem não gostasse da dona Fiinha". Aliás, que apelido simpático a senhora tem. Foi difícil mesmo encontrar alguém que contrariasse essa afirmação. Mas acho que consegui. Uma vez, você me chamou num cantinho, para me trazer para perto de você não só fisicamente, mas para juntar nossas personalidades, semelhantes e diferentes ao mesmo tempo. A senhora, de doçura exaltada a todo momento, me contou um "causo". Lembrou daquele tempo em que uma vizinha, falsa amiga, vivia a rondar sua casa para ver o vô. 

Cansada das investidas da sirigaita, como a descreveu, a senhora pediu que ela esperasse um momento. Andou até o portão e amarrou o cavalo no qual a visita indesejada havia chegado. Tudo isso para ela não fugir. Voltou para dentro de casa, pegou a espingarda e a surpreendeu. Apontou para ela e ameaçou atirar, caso a dona se atravesse a inventar qualquer motivo para visitar seu inviolável lar novamente, em busca de uma aventura com o seu tão amado João. Ninguém se feriu e a moça não voltou a aparecer, é claro. A senhora gargalhava ao lembrar, sem culpa ou pudor, de quando ela tentou tocar o cavalo e ele não andava. Devia ser a milésima vez que contava esse "segredo" a alguém da família.

Não sei por onde a sirigaita anda, vó, mas caso ela já tenha partido, ousaria dizer que ela vai evitar o encontro, mesmo em terras distantes. Dona Antônia, saber das suas peripécias, das suas mil faces, só me faz amá-la mais. Seu corpo era pequeno demais para caber o mundo. Mesmo assim, a senhora não desistia de tentar. As pernas já lhe traíam e a senhora se recusava a obedecê-las, tornando-se refém do tempo. Caiu várias vezes, até que não mais se levantou. Quis beber água sozinha, ir para a igreja sem pedir ajuda para chegar lá e até desceu escadas no meio da noite, com passinhos ensaiados para não acordar ninguém. Não consigo enxergar um traço de fraqueza em seus atos, nem sequer quando penso nos poucos quilos e no biotipo esbelto que exibiu durante toda a vida. Você é toda força e poesia, Dona Antônia.

Não usarei o verbo do passado, enquanto me for permitido. É como eu te disse quando nos despedimos na frente de tantas pessoas que te amavam como eu, com a senhora ali de olhos fechados e semblante tranquilo que me acalmava: a minha avó jamais vai morrer. Meus cabelos são seus. Os dentes também. Alguns dizem que as mãos saíram a cópia das suas e um pedaço do gênio difícil também. O nosso pertencimento vai tão além do reflexo que vejo no espelho.

Todas as despesas do funeral (não só as do seu como as do meu avô) já estavam pagas. Foi o vô quem deixou tudo acertado, inclusive o lanche das visitas. Ele queria partir sem dívidas e, como sempre, não se esqueceu de você, que apoiou a atitude honrada. Meu coração se inundou de admiração. Ser independente é uma questão de dignidade. Obrigada pela lição final. Eu te enxergo com toda minha alma, vó, e alma não é como corpo, que morre e não deixa sinal. 

A senhora sempre tinha uma Bíblia por perto. Eu levei a minha, um livro de poesia, do seu conterrâneo, Drummond, para ter umas palavras bonitas para lhe dizer.


"Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança. 
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação"

Nenhum outro desfecho cairia tão bem a quem levou a vida com a delicadeza que só as obras genuínas carregam em si. É preciso aceitar a separação. Nos encontraremos em fotos, palavras e nas histórias engraçadas e sábias deixadas para as próximas gerações. Nos veremos no simples ato de pentear meus cabelos a cada manhã, enquanto meu peito se alegrar ao reconhecer sua existência fragmentada em todos nós. Voa, dona Fiinha, com seu jeito de passarinho.

Um comentário:

Unknown disse...

Linda mensagem! Com certeza, sua avó É uma pessoa especial.
Gd bj,

Lisiani