terça-feira, 21 de agosto de 2012

Um dia no Hospital de Base


Assim como as pessoas, cada lugar tem um cheiro próprio, que não se repete em outros. Pode ser que você não perceba de primeira. Mas, quando sentir algo parecido, se lembrará do momento passado. Talvez até leve alguns minutos até entender a associação. Ontem, conheci um cheiro novo. O do ar do Hospital de Base, o maior de Brasília, com seus 12 andares. Havia estado ali outras dezenas de vezes, mas a trabalho, o que torna a situação totalmente diferente. Jamais tinha entrado lá como alguém que precisa dos serviços daquele local. Também nunca tinha permanecido durante horas em meio às pessoas, todas doentes, algumas mais outras menos.

O Hospital de Base tem cheiro de espera, de coisa antiga. Olhar para o teto explica um pouco. Há mofo e o forro está despedaçado em alguns pontos. O cheiro dos corredores se mistura ao das pessoas. Há gente mais pobre e menos pobre, todo mundo sentado lado a lado, aguardando a solução. Um homem entrou sem um pedaço do dedo. Segurava o membro mutilado com um pano cinza que lembrava cobertor de mendigo. Ele não era morador de rua. Estava limpo, arrumado e tinha um semblante feliz, apesar de lhe faltar um pedaço do corpo. Não gemia, não gritava e até sorria. Bateu de porta em porta em busca de quem pudesse resolver a situação. Sentou e esperou. Não se sabe até quando.

Perto dali, outro senhor, aparentemente tranquilo, esperava o médico dos rins. Calçava chinelos velhos e parecia ter no máximo 40 anos. Também não vivia nas ruas. Mas cheirava como quem vive. Os pés sujos de terra combinavam com as unhas das mãos, todas no mesmo tom de sujeira e descuido. O homem não parecia se importar. Ninguém parecia ligar, na verdade.

Logo à frente, um senhor esperava deitado no banco. Não parecia pobre. A filha o amparava, dando-lhe colo para encostar a cabeça, como provavelmente aquele homem  fez com ela nos primeiros anos de vida. Ele tem câncer e deve morrer em breve. Por mais que ninguém diga isso com todas as letras, é o que significa dizer que alguém está em fase terminal. Ele sentia dor, por isso estava ali com a filha.

Mesmo em meio ao desalento, sempre existem aqueles que querem fazer amigos. Não importa em que lugar nem a qualidade (ou reciprocidade) da relação. Na sala de espera do tomógrafo, uma mulher socializava. Forçava conversa com todo mundo e quando conseguia uma brecha mostrava logo fotos das três meninas gêmeas que teve há 7 anos. "Fez tratamento?", eu pergunto. "Que nada menina, meu nego é homi mesmo, de uma pimbada só foi lá e fez logo três. É macheza...", admirou-se a nordestina.

Brancas, negras, altas, baixas, muito pobres, de classe média sem plano de saúde, limpas ou sujas, dezenas de pessoas, quem sabe centenas, aguardavam socorro naquele dia. Os mais enfraquecidos deitavam-se em macas nos corredores. Todo ano, morrem 1,8 mil pessoas no Hospital de Base. Em meio ao barulho do dia a dia, gemidos podiam ser ouvidos lá no fundo, com um pouco de atenção. Gente chora todos os dias na porta do Hospital de Base. Haveria um rio na porta do hospital, se a água não secasse.

Cada lágrima leva embora um pouco da dor. Ou não. Um rapaz consolava a parente. "Eu te disse, te trouxe para você ver, vai ter que se conformar, não tem jeito". Há também os loucos. Não os da ala psiquiátrica, internados e sob cuidados. Loucos que gostam de passear no Hospital de Base. Um deles chegou no fim da tarde de ontem, descalço e falando alto. O homem carregava um saco de pano. Aproximou-se de uma lixeira perto dos meus pés e, sem dizer nada, começou mexer  no lixo. Tirou de lá uma garrafinha de água vazia. Olhou para ela e sorriu como quem encontra o que estava procurando. Colocou-a dentro do saco, com outros objetos descartados por pessoas. Depois, comeu um biscoito que um neném tinha derrubado no chão, na maior felicidade. Fez que ia embora, mas voltou.

Gritava, como gritava, o homem. Depois de berrar frases indecifráveis e de usar o banheiro, ele saiu. Enquanto deixava a emergência resmungava: "Eu gosto mesmo é de apanhar, pensei que iam me bater, botar algema e fazer a coisa toda acontecer, mas que nada, hoje não teve foi nada. Amanhã eu volto". São servidas 107.732 refeições todos os dias no Base. Os médicos fazem em torno de 12 mil cirurgias por ano e no local há 833 leitos e 200 banheiros. Quase 6 mil quilos de lençóis, roupas e toalhas são lavados diariamente. Dos 14 elevadores, quatro não estão funcionando. Há 52 mil metros quadrados de área construída. Só com a conta de luz são gastos mais de R$ 211 mil todo mês. O gasto com água consome R$ 281 mil e a de telefone, R$ 24 mil. Pelo menos 250 voluntários atuam no local.  E a vida segue...

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