segunda-feira, 30 de julho de 2012

A menina idosa


Ela chegou amparada pelo filho, um rapaz alto, muito alto, na verdade, porém frágil como uma criança diante do medo de perdê-la. Nas mãos trêmulas, a mulher de rosto mapeado pelo tempo trazia uma boneca, um bebê de plástico de olhos congelados, minerais. Os olhos da mulher, carregados de memórias, com os cantos avermelhados, perdidos no meio da vida que se desenrolava diante deles, não sabiam onde estavam.

As pernas já não sustentam mais o peso do corpo, mesmo tão miúdo. Estão ainda mais cansadas do que aquele olhar. Era segunda-feira à noite e não dava para dizer se fazia mais frio dentro ou fora da alma daquela mulher, tão perdida em algum lugar entre quando era criança e hoje, quando não poderia ser mais distante de uma menina que brinca com bonecas.

Uma presilha pequena adornava os cabelos brancos. Alguém havia prendido-a ali. Alguém que realmente amava aqueles fios sem cor, aquela pele sofrida, aqueles olhos que não eram dela, pertenciam ao passado. A mulher poderia ter 100 anos. Um século de amores, obrigações, trabalho, filhos, amizades, maldades e, quem sabe, bondades. Presume-se que é boa, pois o filho a guiava com carinho e não por obrigação.

Agasalhou-a e levou-a para passear em uma segunda-feira de frio. Deixou que ela levasse no colo a boneca, sem se importar com o que diriam na rua. "Olha a velha maluca, acha que é uma menina, brincando desse jeito". Que falem. Por mais que a medicina insista em dizer o contrário, nem todos têm coração. E se têm, alguns esqueceram da sua verdadeira utilidade. Se bate, bombeia, mas não produz compaixão, já falhou faz algum tempo.

Nas mesas ao lado, alguns olhavam com curiosidade. Outros nem sequer notaram a presença da menina idosa, que tristonha alisava os cabelos da boneca enquanto cochichava uma canção em seu ouvido oco. Não reparavam o cheiro da melancolia e neblina no ar. Não viam a tristeza flutuar. É que às vezes acontece de gente ser cega, mesmo quando tem capacidade física de ver. Acontece todos os dias. Nas esquinas de Nova York ou na birosca em Taguatinga. É um fenômeno mundial. E que azar o mundo tem de ser assim.

Envelheço um pouco enquanto olho a menina idosa falar com sua filha de plástico, sem vida, sem sorriso, sem roupa. Entristeço também, mesmo sem saber o nome da menina de 100 anos. Assistindo-a de longe, como quem vê um filme dolorido, mentalmente digo: Ei, eu compartilho a sua dor! Faço parte da sua vontade de voltar, de ser menina um pouco mais, de viver mais um momento, porque não se sabe o que há do outro lado e nunca brincamos demais, nunca sonhamos demais, nunca fomos inocentes por tempo demais. Então fica assim. Seja criança um pouco mais, enquanto ainda há tempo e já não existem as amarras do medo do outro, o temor do ridículo. Deixa a menina brincar e vamos começar a viver tudo de novo.


“A morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parte da humanidade; e por isso, nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”.

John Donne, poeta inglês do século XVI, sobre os sinos das igrejas que tocavam para anunciar a morte de alguém (quando todos morrem um pouco).

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