terça-feira, 4 de setembro de 2012

Domingos me faz feliz


Se não fossem os encontros improváveis, a vida seria música de um verso só. O encontro entre um milionário preso a uma cadeira de rodas e um jovem pobre que acaba de sair da cadeia teria tudo para ocorrer somente nas páginas policiais, quando o bandido invadisse a casa do rico para roubar ou encostasse uma arma em sua cabeça em um semáforo qualquer de São Paulo ou Nova York, tanto faz. Na realidade e na arte, porém, o enredo (ainda bem) sai do pessimismo para trazer novos ares à existência de pessoas que poderiam jamais se encontrar, mas conseguiram desviar seu olhar da superfície para se enxergarem e, de certa forma, fazerem parte uma da outra.

Intocáveis é o nome do filme francês em cartaz. São dele os personagens: o ricaço e o suposto fracassado. Tetraplégico após voo malsucedido de parapente, o milionário é um retrato do tédio, mas jamais do mau humor. Sedendo por animação, dentro da casa enorme e cheia de peças de arte que divide com a filha adolescente e empregadas, Philippe contrata o candidato mais improvável entre todos para ser uma espécie de cuidador. Driss, negro, alto (muito alto), é a brutalidade em forma de gente. Pelo menos até que se lance um segundo olhar sobre ele. Philippe vê a vida com vários olhares, pode estar preso à cadeira de rodas, mas jamais estará acorrentado a uma visão míope dos seres humanos ao seu redor. Ele sabe que a doçura está onde menos se espera. Ela assume várias formas.

Philippe gosta de música clássica. Driss prefere Earth Wind & Fire. O que os une, porém, significa muito mais do que classe social ou gosto para música. É o olho que brilha, o riso que abre fácil, a empatia, o coração que fala com outro coração. Há em comum uma vontade genuína de saborear a vida de maneira espontânea e sentir prazer em um passeio pela madrugada, quando se pode respirar um pouco de ar puro e dizer, aliviado, "eu existo". 


Em certo momento, Driss diz a Philippe: "eu sou seus braços e suas pernas", o que está longe de ser piegas. Driss segura o baseado que Philippe deseja fumar, contrata uma prostituta só para lhe massagear as orelhas, umas das poucas partes sensíveis que restaram no corpo. Em troca, Philippe ensina a Driss que arte é vontade de deixar uma marca no mundo, existir além da existência. Aos poucos, Philippe deixa de ser um homem aprisionado à limitação física. Driss se liberta da ignorância e da dureza, de forma leve e natural. Tornam-se livres e a chave que os libertou tem nome: amizade, amor.


O filme é baseado em história real. O que o torna ainda mais delicioso. A vida é boa, quando nosso olhar é bom, e há pessoas como Philippe e Driss mais perto do que se imagina. No Lago Sul, Salomão, um procurador da república aposentado, com 80 e poucos anos, desviou seu olhar do rumo de casa -- uma mansão confortável, com esposa amorosa e cheia de filhos saudáveis e estudados à sua espera --  para enxergar Domingos, rapaz pobre, de pouco mais de 30 anos, totalmente atrofiado e sempre repousado sobre uma velha cadeira de rodas manual, no sinal de trânsito. Domingos não é bonito de ver, a primeira vista. É pequeno demais para um adulto. Não teve chance de ter um sorriso completo, a pobreza levou seus dentes, mas não a simpatia. Mesmo assim, ele conservou o riso aconchegante, o que o torna agradável os olhos e ao coração.


Salomão viu Domingos. Deixou seu olhar encontrá-lo pelo caminho. Tornaram-se amigos. Quem passa pelo semáforo onde Domingos vende suas quinquilharias, em certos momentos do dia, verá Salomão sentado perto do meio-fio, em um toquinho de madeira à beira da pista que leva para sua mansão. Pergunto sobre o que os dois conversam. "Não mexo muito na vida dele, não quero explorar a miséria do Domingos, saber se é triste no barraco onde ele mora, mas sim o que ele tem de bonito, o hábito de fazer piada o tempo todo, o humor peculiar e a disposição de estar bem. Domingos me faz feliz", explicou Salomão.


Entre um papo e outro, Salomão descobriu que Domingos guarda cada centavo que consegue economizar (e economizar o que já é pouco é tarefa das mais difíceis) para construir uma casa em sua terra natal, o Pará. Sonha com piso de cerâmica, banheiro adaptado e teto forrado. Salomão iniciou uma campanha para arrecadar dinheiro, que se transformará em tijolos, cimento, argamassa e, por fim, em sonhos. Domingos jamais imaginou ser figura central de um movimento como esse. Tornou-se conhecido e "entrou" na casa e na vida dos moradores do bairro mais nobre do Distrito Federal. 


 Domingos e Salomão (segurando a cadeira). Foto: Carlos Moura/Reprodução do site do Correio Braiziliense.

Salomão é a imagem que Domingos gostaria de ver quando se olha no espelho. Domingos queria ser advogado, desde menino. A miséria levou mais esse plano para longe. Embaralhou as letras do alfabeto e fez de Domingos alguém que lê pouco e entende menos ainda. Alguém que coleciona sonhos não realizados. A vida se encarregou de aproximar um e outro, para misturar um pouco a sorte e o azar, o rico e o pobre, e mostrar que, no fim das contas ou dos dias, somos todos feitos do mesmo pó.

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