segunda-feira, 14 de julho de 2014

Todo mundo é ninguém




Um dedinho torto se esconde sob a sapatilha. O dente de baixo insiste em cobrir o de cima. As sobrancelhas têm falhas que nunca endireitam, não importa o quanto você passe gotas mágicas de fórmulas vendidas em salão de beleza, pensadas especialmente para fazer você descobrir um defeito. Aquela mancha no rosto insiste em aparecer, mesmo coberta por dois quilos de base. Seu nariz é grande demais, a boca fina, o cabelo grosso, a orelha podia ficar um pouquinho mais colada na cabeça, os olhos são grandes (ou pequenos, tanto faz), os dedos das mãos podiam ser mais longos e a palma um tanto menos achatada. Que tal pernas mais longas? Braços menores?

Dia desses, um cirurgião me contou que existem próteses para qualquer lugar do corpo. Uma delas, vai no queixo, uma bola de silicone, para dar angulação mais interessante ao rosto, sabe? Não, não sei. Nunca tinha pensando no queixo como algo passível de intervenção. Ele dorme e acorda comigo há 27 anos, temos boa relação. Dá até para quebrar as maçãs do rosto, desconstruir-se como quem bota uma parede a baixo. Assim como as reformas intermináveis em nossas casas, podemos ser eternamente insatisfeitos com  a nossa aparência, odiar tudo que nos confere o atestado de obra-prima, de original sem cópia. Queremos nos camuflar, desaparecer entre um exército de clones e nos livrar finalmente de qualquer vestígio daquilo que saiu da barriga de nossas mães.

 Semana passada, um moço me perguntou no elevador se eu tinha um bom dentista. Respondi que estava devendo uma visita, mesmo sem entender a pergunta. Me entregou um cartão e prometeu: "Em coisa de uma ou duas sessões, dou um jeito nesses seus dois dentes separados. Vão ficar novinhos". Ali, bem no meio da minha boca, o moço enxergou um cheque em branco assinado, autorização para me salvar do calvário que é a diferença (puramente estética, nesse caso). Mas quem foi mesmo que disse que preciso "endireitar" o vão entre os dentes? Que desejo pagar para sentir dor para me parecer com todo mundo? O vão me acompanha desde sempre, nunca me incomodou, nem me ofendeu diante do espelho. Pelo contrário, gosto dele, acho um charme. É só mais uma parte de mim, "fora do lugar" pelo mesmo motivo que o céu é azul e o ar é invisível e não cor-de-rosa.

A obrigação de puxar conversa no elevador revela monstros. Um vizinho perguntou porque eu não alisava o cabelo, disse que a filha dele também tinha o cabelo muito ruim e que um fulano tinha dado jeito. Agradeci educadamente e disse que me sentia perfeita, "bonita pra caramba", mas obrigada. A ideia é fazer parte de um lote de gente, parecer o máximo possível com as outras pessoas: alisar o cabelo até que ele fique igual ao da Cleo Pires e não ao meu, afinar o nariz e dar adeus aos antepassados, ficar a cara daquela moça da L´oreal!  A moça da TV tem o cheiro de mil outras moças.

Um namorado da adolescência vivia mascando big big de morango, "para melhorar o beijo". Não tinha bafo nem nada. Sofria de aversão a si mesmo. Terminamos em uma semana, sem que eu pudesse conhecê-lo de verdade. Desde então, o cheiro do chiclete me dá ânsia. De outras pessoas, lembro do aroma do corpo, do toque do cabelo natural entre os dedos, do nariz pontudo que às vezes encostava no meu olho, de um osso estranho no peito, onde era bom encaixar a cabeça, do espirro esquisito, da risada descontrolada. De tudo que não era, mas era, perfeito, enfim, porque não estava disponível em mais ninguém.

Se pudéssemos, teríamos menos barriga, mais bunda, menos peito, olhos azuis. Se tivéssemos escolha, não seríamos nós mesmos e isso é triste o suficiente para nos levar ao caminho de volta. Se pegarmos o retorno,  ainda poderemos seguir rumo a quem somos e respirar aliviados por deixar de ser só mais um trauma de big big na vida de alguém.

Um comentário:

Paty disse...

Maravilhoso!!! como vc escreve bem!!!

e concordo com tudo dito acima, estamos em um momento em que as pessoas fazem atrocidades consigo mesmas para ficarem iguais a todo mundo.