terça-feira, 27 de novembro de 2012

Sobre mulheres e leoas

Foram mais de 20 anos de opressão. Soará tão trivial, apenas mais um detalhe de aparência, como um dente grande demais, para quem desconhece essa realidade. Mais um entre todos os motivos que as pessoas encontram para explodir a autoestima de alguém. Só que não é. "É tão bonitinha, branquinha, delicada, pena que tem o cabelo ruim", sentenciaram certa vez, quando eu era pequena. Minha mãe não discordou. Meu pai não economizava dinheiro quando o assunto era alisamento. Não os culpo. Queriam me ver mais bonita, mais adequada, aceita, e só conheciam um caminho: negar a minha natureza. A maior parte da sociedade (pelo menos aquela com que convivi a vida toda) pensa assim, sem refletir sobre o porquê.

Durante a adolescência, a gente usa a roupa errada, sai com gente errada, pensa errado e faz de tudo para ficar um pouco mais feio, só que sem saber. Pelo menos três vezes, escutei de garotos que diziam gostar de mim que meu cabelo não tinha jeito, mas que alisar era menos pior. Eles queriam a menina da capa da revista e eu que me virasse para ficar mais parecida com ela. Arrisquei minha saúde, passei formol, pasta caseira de cabeleireiro maluco e perdi as contas de quantas vezes feri o couro cabeludo até sangrar. Se ganhasse R$ 1 para cada vez em que deixei uma chapinha mudar meu cabelo, estaria milionária.

Quando me tornei adulta, passei a me enxergar diferente, como deve ser com todo mundo. Fiz a opção de ser mais eu do que nunca. Deixei secador de lado, aboli a prancha e o alisamento. Dois anos depois, lá estava meu cabelo recuperado de todas as agressões desnecessárias às quais o expus. O melhor caminho era não fazer nada. Depois de saber disso, fui mais feliz. O que está na minha cabeça agora é meu, em todos os sentidos, do pensamento ao fio. Uma pena é precisar se reafirmar todos os dias e educar quem vive ao meu redor.

No último fim de semana, ocorreram shows da semana da consciência negra. Teve Elza Soares e fui conferir. Caprichei no visual afro e fiz de tudo para ter um penteado no melhor estilo black. Entre uma música e outra, escuto o papo de dois garotos. "Podiam levar essas minas para um zoológico, parece umas juba de leão (sic)", dizia o rapaz ao amigo, em clara referência aos cabelos crespos, soltos e volumosos que tomavam conta e embelezavam a noite, mas não na visão do garoto branco e de cabelos lisos, que acredita que a sua seja a única forma de beleza.

O garoto, provavelmente, era daqueles que zombavam dos colegas negros e das meninas do cabelo cacheado na escola. É lamentável que parte das pessoas passe de uma fase para outra da vida sem conquistar a capacidade de questionar. Quem disse que o cabelo liso é o bom? Porque você alisa seu cabelo? Se depois de pensar, você chegar à conclusão que se prefere alisada, tudo bem. Não é melhor nem pior. O importante é pensar e só depois fazer. Não faz muito tempo eu ouvi de uma amiga, ótima pessoa, mas equivocada na opinião: "Você diz que gosta do seu cabelo, mas duvido que, se pudesse escolher, continuaria com ele assim". Pois não, eu não escolheria ser de outro jeito. É amor verdadeiro. Dia desses, meu pai me perguntou se eu queria dinheiro emprestado para fazer o alisamento, achando que eu deixei de fazê-lo pelo preço. Tentei explicar sem sucesso que eu me gostava mais assim.

Tenho duas avós: uma negra de cabelo cacheado e outra branca do cabelo tão liso que nem grampo pega. Me ensinaram a lamentar não ter puxado a segunda. Quando meu irmão nasceu, com cabelo mais liso, disseram: "Só salvou o menino, que coisa injusta, homem não precisa de cabelo bom". Me fizeram também desejar um marido de "cabelo bom" para que minha filha tivesse alguma chance de ser "melhor" do que eu. Tudo isso dito sem meias palavras ao longo dos anos. Hoje, deixo claro o meu desejo de que a futura filha, se vier a existir, seja exatamente como eu, ame a própria beleza e se valorize linda como será. Porque ela não vai precisar encontrar uma princesa da Disney quando se olhar no espelho. O que ela enxergará vai estar de dentro para fora. Será uma leoa sem medo de viver fora da jaula.

4 comentários:

Unknown disse...

Awesome... :)

Tiago Emerick disse...

O mesmo acontece se você não nasce com olhos azuis.
Ótimo texto. Gosto de como escreve.

Paísios Diaz disse...

Excelente texto! Sempre preferi mulheres de cabelão! Cachos de qualquer tamanho e tipo, tornam a mulher mais interessante. Apontam personalidade. Otimo que estejam pouco a pouco assumindo a natureza! So tenho uma ressalva a fazer: Não precisava ter enfatizado tanto o biotipo dos babacas que falaram aquela besteira no show da Elza. Isso reforça a atitude defensiva de mulheres negras em relação a caras brancos. Sei que o preconceito é enorme, mas não parte so de "brancos". Minha ex namorada tinha um black lindo e boa parte das ofensas e gracinhas que ela ouvia, partiam de homens e mulheres negras. Mais isso com o tempo muda. Otimo texto!

Leilane Menezes disse...

Obrigada, Vinícius. Enfatizei porque me apego a detalhes descritivos sempre (pelo menos essa foi a intenção). Mas realmente, pode soar como um preconceito também... minha pele é branca, meu cabelo é afro, sou uma mistura de tudo, afinal.