Restaram apenas dois dentes moles e podres pendurados na gengiva e algumas lembranças vagas para José Carlos. O resumo de 66 anos de existência: ninguém vê José Carlos ou Carlos José. Ele inverte a ordem dos nomes quando quer se apresentar. Vai conforme o próprio desejo, respeita o próprio humor. José Carlos vive de casa em casa, se alimenta da paciência e da solidariedade dos parentes. Já pensou em morar debaixo da ponte, onde não precisaria pedir favores a ninguém e assim viver sem dívidas morais ou financeiras. Repensou a ideia por medo dos bandidos, com os quais é confundido com frequência nas ruas de Brasília.
Há quem atravesse a rua quando José segue por ela. Sem olhá-lo nos olhos, alguns reconhecem nele uma ameaça. José Carlos (ou Carlos José) pode roubar a sua segurança. Te tirar do silêncio de uma casa limpa, com roupas limpas e gente que se esforça para parecer limpa demais. Experimente deixar de ignorá-lo e tentar vê-lo. José sujará a mente de quem aceitar o desafio. Se instalará.
José está sempre lá, embora quase nunca seja visto. Não perde audiências de casos polêmicos no Tribunal de Justiça do DF e Territórios. Faz questão de chegar cedo e de sentar-se logo à frente do acusado, juíz, promotor e quem mais participar da cena. Muitas vezes interrompe os julgamentos. Solta um grito e profere sentença: "Ela é culpada, meu amigo. Não ta vendo que matou todo mundo? Isso aí é uma macaca. Uma malagradecida". E precisa ser acalmado por algum funcionário.
Durante as audiências, José esquece de si mesmo. Quer acreditar que é advogado e não um gari aposentado. "Eu nunca erro uma. Você tem que ver, minha filha. Acerto tudinho. Quando eu digo que é culpado é porque é. Se eu tivesse estudo nessa minha vida ocê ia ver o doutor que eu ia ser. Mas não deu, meu bem, não deu", diz José.
Quando não consegue ir ao tribunal para acompanhar os julgamentos, José se dedica a analisar as notícias sobre crimes que passam na televisão. Bem que tentou fazer uma assinatura de jornal, mas não coube no orçamento de aposentado. José conversa com a televisão. Conversa não. Ele briga com o aparelho, como se alguém pudesse ouvi-lo.
José se orgulha de ser cumprimentado por homens de terno, no TJDFT. Alguns lhe dão rara atenção. José lembra que certa vez serviram-lhe até um cafezinho. Ele também gosta de ir ao Congresso Nacional. Ali, parte das pessoas evita ficar perto de José. Algo compreensível devido à quantidade de vezes em que ele toma banho. "As veiz um, as veiz dua. Vai saber né, minha filha, quando é que dá tempo de fazer as coisa", ele explica. Seu José não quer perder tempo debaixo do chuveiro. Argumenta que não sabe quanto tempo ainda vai viver. Daí talvez a ausência dos dentes.
Ele diz ser filho de pioneiro. Ficou chateado na semana passada, quando convidaram alguns candangos para homenagem no Congresso e não lembraram dele (que é "candango de consideração", como ele mesmo se classifica). "É isso aí cambada de urubu", gritava no distinto Salão Nobre do Senado Federal, enquanto a cerimônia ocorria. José não coordena as próprias memórias. A ele pertencem apenas lembranças desordenadas, ora contadas de um jeito ora de outro.
Sujeito desconfiado, não gosta de passar seu número de telefone. "O que que você vai querer com um homi feio e desdentado que nem eu, minha filha?". Aceita dar entrevista, contanto que a repórter pague o almoço e o lanche. Não aparece na hora marcada. Quando ligam cobrando-o pelo atraso, José solta pérolas: "Pare de dar em cima de mim! Eu vou quando o tempo der, quando os pé quiser". O mundo vai ter de esperar para conhecer José Carlos... ou Carlos José.
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