quinta-feira, 15 de abril de 2010

queda livre

O dia amanheceu cinza para Ana, embora lá fora fizesse sol. Ela levantou da cama, sentiu o frio do chão e ele tinha a temperatura de seu coração. Aos esfregar os olhos cansados, Ana decidiu: aquela manhã de quarta-feira seria diferente. Não foi ao trabalho, como fazia sistematicamente há 20 anos. Decidiu passear pela cidade, sem rumo.

Parou em um praça e observou as pessoas que passavam, enigmas ambulantes guardados sob uma frágil superfície. "Somos uma embalagem muito pequena e quebrável. Como suportar tanta felicidade e dor? Talvez por isso a carcaça ceda", pensou. Olhou para a criança suja que corria como se não fizesse parte do cenário. Teve a impressão de que aquela menina não conhecia a palavra cuidado e que anos depois se transformaria naquilo para o que era criada: nada. Mataria, roubaria. Não havia esperança.

O vazio se instalou. Ana foi almoçar. Sentou à mesa no melhor restaurante da cidade, pediu um prato da melhor lagosta, que tinha um nome pomposo no cardápio, mas era basicamente isso. Degustou um a um os pedaços e não se privou de sobremesa: doce de leite e sorvete. Pagou no crédito. Riu do garçon. O celular, a essa altura, estava no lixo. Aonde ela ia não tinha sinal. Não era necessário.

Ao sair, passou pelo bairro mais chique da cidade e percebeu como era uma mulher sem graça. Havia sido uma menina sem sal nem açúcar, uma adolescente triste e se tornara uma adulta infeliz, incompleta e cheia de sonhos não realizados. Decidiu experimentar a sensação de viver em um apartamento de R$ 1 milhão. Caminhou até uma banca, escolheu o anúncio de uma corretora, foi até lá e pegou as chaves.

Subiu as escadas sem pressa até o 6º andar, destrancou a porta, entrou  e observou calmamente a vista daquela cobertura. Olhou para cada canto da cidade, cada ir e vir, cada um que caminhava a passos largos e não viu doçura na vida. Não enxergava mensagem em nada. Optou então por se jogar. Na queda, se entregaria como nunca tinha feito antes.

Firmou os pés no parapeito, respirou fundo e sentiu o gosto amargo que vinha do estômago à boca e voltava para o peito. Não havia razão para estar ali, quando apenas um motivo bastaria. Sem amor, sem dinheiro e sem fé no ser humano, que tanto mal faz ao outro. Se vivesse, seria apenas uma mulher sem fôlego ignorada pela vida, zombada pelas circunstâncias.

Nada poderia ser pior que isso. Um barulho como um grito de desespero atordoado que batia na calçada ecoou pela quadra. Em poucos segundos, não havia mais Ana. O batom vermelho se misturou ao sangue. Ana nunca esteve tão viva aos olhos do outro. Ana pôde finalmente adequar sua aparência física a como se sentia por dentro: aos pedaços.


*é tudo ficção ok?

2 comentários:

A(quela): disse...

Belíssimo! A angústia humana tem sempre uma saída drástica...

Victor Martins disse...

Toda vez que termino de ler um texto seu, aguardo um pouco mais ansioso pelo dia que lerei um livro inteiro com a sua assinatura.