terça-feira, 11 de novembro de 2008

deixe-me dançar sua vida

Por Fabrício Carpinejar

Quando danço com minha mulher em casa pego o LP e ponho no antigo toca-disco. O ritual semelhante ao de esticar os lençóis antes de deitar. Levanto a tampa de acrílico, sopro o pó, arrumo a agulha. O aparelho pede proximidade, apoio, vigília. Ligar sem botão de controle, de modo manual, com os dedos tremendo. A ponta afiada nos círculos traduz nossos sapatos no piso. Ajuda o vaivém no pescoço, a troca consensual da língua e da respiração. As rotações lentas e o ruído suave para ouvir as preces e os pedidos dela.

Ouvir o LP é não apagar as cigarras da noite e da varanda. É uma noite com os astros gritando ao fundo. Escolhemos para tocar os discos adquiridos separadamente por cada um na adolescência e que dominavam as reuniões dançantes. Álbuns com os encartes rasgados, amarfanhados, curtidos. Algumas músicas estão arranhadas pelo uso excessivo, mas a falha é abafada porque se conhece a letra de cor e cantamos alto. E o som é apenas o eco do nosso próprio timbre. É como se recuperássemos o tempo que não nos conhecíamos. Nosso jeito de voltar ao passado e namorar em distintas fases da vida dos dois. Torno-me seu primeiro, seu segundo, seu terceiro, seu último namorado. Sou seus amores festejados em um.

Retornamos às antigas festas como estranhos. Retornamos aos locais em que um e outro ainda queriam aprender a amar. Nos cumprimentamos ao longe, esperando que um colega nos apresente e facilite a conversa. Não aguardo, percorro o salão, fingindo devolver o copo vazio à mesa. Encho as mãos com as suas. Dançamos. As canções são a memória dela. Entro nas rimas, hospedo-me em suas impressões, faço cama nos estribilhos. Vou girando e a levando para perto. Giro e a peço para namorá-la em toda faixa. Ela diz que vai pensar e intensifico o abraço. E meu braço já é longo como uma perna.

Agora estou em sua formatura, agora estou em seu aniversário, agora estou em nosso casamento, agora estou embalando o nosso filho, agora estou em nossa casa de noite. Ao me provocar, eu a cerco. Ao me distanciar, ela se aproxima. Eu beijo o quadrante entre seu nariz e o olho. Nenhuma outra boca chegou ali. Perto do seu sinal de nascença. Entre as lágrimas e o suor. Ela me pára de repente e os pés amontoam os passos que deveriam ter acontecido. Ela busca decifrar a cor dos meus olhos. O escuro a atrapalha. Ela entra com os pés nas minhas pupilas. Prova a água e fala que está quente para o mergulho. Meus olhos são marrons. Meus olhos são cor de mel. Só para minha mulher eles ficam verdes. Só para ela. É preciso estar muito rente deles. Eles chovem verde quando amam.

ps: não pude deixar de compartilhar. admito, fez meus olhos lacrimejarem. Obrigada, Julliany.

2 comentários:

Alamo do Mont disse...

Carpinejar escreve como a vida deve ser sem a cegueira branca de Saramago.

Julliany Mucury disse...

Você entende... obrigada... é importante ter com quem partilhar essa sensação de plenitude. Leia-o, mas escreva, você completa as lacunas deles. Beijos!