terça-feira, 22 de março de 2011

a cor da realidade

Tudo é breu na esquina. O que dorme debaixo do papelão é rato, barata e gente. Carne, humanidade encaixotada. Igual televisão, mobília, plástico bolha. É tudo a mesma coisa. Tudo some, no final. O frio sobe dos pés à cabeça. Assim como a sorte, não espera autorização nem respeita vontade. Mundos convivem por obrigação. Sem saber que suas ruas são as mesmas.

O engravatado passa. Olha. Não se reconhece. Abre a porta, sobe as escadas. Em breve, estará em uma cama quente, depois de um banho quente, de comer uma comida quente e viver uma vida morna. O colchão do outro é rua. Asfalto com cheiro de pegada, saliva e chiclete. Comeu a sobra do antes de ontem. O resto de alguém. Mastigou pensando em voltar aonde nunca esteve. Engoliu sem reação. Não são tão diferentes assim.

O homem de gravata é dono de nada. O que dorme às margens do prédio é o nada e o que quiser ser. Se acordar no meio da noite, ele vai até a parada de ônibus. Fica logo ali. Há livros. Na madrugada, ele finge que lê. Alguém os deixou ali, sem saber pra quem. Ele passa as páginas, como quem esperava assim adiantar um pouco da própria história. O homem-bicho, sujo, sentado no abrigo, rodeado de livros. Delírio sensível, no meio do escuro.

Seu despertador é barulho de carro passando na rua, fazendo a água da poça espirrar. Homem de gravata e homem de rua. Somam-se os vazios. Um não tem casa. Simples assim. Acostumou-se a não tê-la. Nem sabe se é dela que a falta sente mais. O outro, em seu conforto, poderia ter mil casas, todas com televisão e pinguim em cima da geladeira, e ainda assim sentiria-se sem teto. Sem rumo. Faltou chão para um. Sobrou para o outro. Eles se ignoram. Pintam juntos um quadro da realidade preta e branca. E, quando o dia teima em começar pela milésima vez, ensaiam o viver.

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