Meus pés doíam. Os tênis apertavam meus dedinhos menores com o peso de uma barra de aço. Eu me encontrava, do alto dos meus 1,60m de altura, voando, boiando, abstraindo toda e qualquer conversa dos trabalhadores de cheiro forte que rezavam em silêncio junto a mim para que o coletivo não capotasse, por conta do pé pesado do motorista, que obviamente estava insatisfeito com a profissão.
Senti uma mão perto de minhas costas. Dedos leves apalpavam meu ombro esquerdo. Quando olhei para trás, uma senhora negra, com aparência de ter mais de 50 anos, era a dona dos dedinhos que me chamavam. Ela estava de lado para mim, atrás de mim, eu estava de costas, virei apenas o rosto para o lado. Olhei para ela, fingindo um sorriso de gentileza e paciência que não me foram dadas por Deus.
Ela então disse: Olha que horror. Você não acha uma vergonha? – apontando para o lado esquerdo. Inocente e meio embriagada de modernidade, respondi: O que? O motorista e o jeito idiota dele dirigir? Mais do que rápido, a mulher retrucou: Não. Aquelas duas sem vergonhas, olha que horror – repetiu.
A um metro de onde estávamos, duas meninas se abraçavam, em pé no corredor do coletivo. O casal tinha uns 16 anos. As duas vestiam uniformes de escola pública do DF. Ás vezes, elas trocavam tímidos selinhos que mais pareciam beijinhos de beija-flor. Não eram uma dupla de emos, desesperadas por chamar atenção. Mas sim duas meninas apaixonadas, muito jovens, se comportando como pessoas normais que são. Se havia algo a ser provado com aquela atitude era isso: elas eram normais. As duas tinham cabelos pretos. A mais alta, possuía as mechas cortadas na altura dos ombros e alisadas de uma forma meio displicente. Mais baixa, a outra menina tinha cabelos longos, até o meio das costas e era mais bonita e delicada.
Quando escutei a pergunta da senhora negra comecei a rir descontroladamente. Dei a ela sorrisos como resposta. Ri pelo fato de uma completa desconhecida se dar o trabalho de cutucar alguém que nunca viu na vida para vomitar preconceito. O que será que aquela mulher esperava de mim? Que eu dissesse: nossa, é mesmo. Alguém chame a polícia! Pelo amor Deus... Senti muita vergonha alheia. Pensei em perguntar o que ela tinha a ver com a vida daquelas duas adolescentes tão felizes, apaixonadas e que não faziam mal a ninguém. Mas achei melhor me virar, calar a boca e respeitar os mais velhos.
Em outra oportunidade, uma mulher tinha feito o mesmo cometário sobre outro casal de meninas em uma parada. O que essas pessoas acham? Que lésbicas não podem andar de ônibus? Porque essas pessoas que nunca vi mais gordas me escolhem para proferir esses comentários imbecis? Devo ter cara de burra.
Ok. Ninguém é obrigado a gostar, achar lindo e gostoso ver duas pessoas do mesmo sexo se beijando. Assim como nenhum homossexual tem a obrigação de não discriminar alguém por ser hétero, por exemplo. Muitos gays acham um nojo, já até me disseram. Mas não saem por ai berrando “eco” toda vez que um homem e uma mulher trocam um selinho inocente no meio da rua.
O dever de cada um, porém, é não se meter na vida dos outros, isso se chama bom senso e é uma regra básica para viver em sociedade. Alguns diriam que as meninas não tiveram bom senso em se beijar dentro de um ônibus. Como qualquer casal do mundo elas têm o direito de trocar um selinho ou se abraçarem quando quiserem. Como elas poderiam prejudicar alguém com um ato tão simples de amor?
Onde está determinado que homens e mulheres foram feitos uns para os outros e tudo que vai além disso é anomalia? Não me falem em bíblia. Outra obrigação que ninguém tem é acreditar em Deus ou nesses escritos. Deus, ou quem quer que tenha feito o ser humano, deu vida para cada um cuidar da sua. Assim como deu um cu e uma buceta ou um pinto para cada um usar como achar mais gostoso. Enfim, pensar, cada um pensa o que quiser, mas dizer ou fazer são outros quinhentos. Se meter na vida dos outros assim é um ato de mesquinhez. Se a velha acha que as meninas vão para o inferno, porque será que esteve tão preocupada em assistir o romance das duas do Plano Piloto até Taguatinga sem desgrudar o olho da cena?
Muito me assusta uma mulher e negra vomitar preconceito assim. Me pergunto se ela nunca foi ofendida ou discriminada por causa da cor da pele e deve ter ficado puta da vida, se sentindo violada, invadida, ofendida. Racismo é tão nojento e burro quanto homofobia. Mas parece que a senhorinha não aprendeu a lição, não sabe como a intromissão dos outros pode ofender e machucar alguém que está numa boa, sem mexer com ninguém.
Um motorista de um jornal, desceu junto comigo do ônibus e se despediu de um amigo gritando dentro do coletivo a seguinte frase: cuidado com as sapatão (sic)!!!! Diversas vezes. Não deu para reparar se as meninas ouviram. Mas eu diria a ele: cuidado com você mesmo. Depois de muito pensar, cheguei a uma conclusão: quem se ofende tanto assim com a orientação sexual dos outros, sente-se dessa maneira porque vê na frente do próprio nariz que o mundo e as opções para encontrar o que todo mundo procura nele – a felicidade- são muito mais diversificadas do que aquilo que eles conhecem.
Já cansei de ver gente dizendo: eu não concordo com essa opção de ser gay, mas respeito. Preconceito velado é doença, cada um tem a sua forma de expressar. Sexualidade, seja ela hétero ou gay, é saúde. E os homossexuais me parecem felizes, já repararam no colorido da parada gay?
Acreditar que existe apenas um caminho a seguir torna a escolha mais fácil. Por isso as igrejas estao cheias de rebanhos, de quem aceite viver da forma que alguém garantiu que era a melhor. Também é mais cômodo deixar que escolham pela gente, mas o resultado, geralmente, é péssimo. Quando alguém prova que as rotas a serem seguidas são múltiplas, essas pessoas se desesperam e começam a vomitar o que têm de mais desprezível dentro de si: a vontade de controlar a vontade e a vida dos outros. Já pensou que chato seria se todo mundo vivesse igual?
2 comentários:
as pessoas sempre se preocupam demais com a vida alheia. Cheguei a conclusão de as complexidades adolescentes não estão na cabeça de quem tem espeinhas, é gordinho, magrinho e etc. o complexo sempre está nas outras pessoas, que se incomodam tanto com as diferenças que acabam machucando quem só está lá, vivendo tranquilamente. a gente costuma dizer que o brasil tem preconceito velado, porra nenhuma, é escancarado mesmo. A gente só diz que é velado para fingirmos que somos legais.
Achei bárbaro seu texto e muito oportuno. Dia desses escrevi algo sobre isso...rs.
Sua nova fã...(que também adora beijos lésbicos, gays, héteros, etc, em qualquer lugar e sem intromissão...rs.
Alessandra Araújo
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