sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

eles existem

Em uma grande cidade, o céu se move na mesma velocidade com a qual as pessoas correm para resolver problemas em uma avenida comercial. Enquanto isso, sob esse mesmo céu tumultuado, um casal de idosos caminha alheio à correria do tempo. Para eles, a vida anda bem devagar, que é para não acabar antes da hora. A mulher deve ter mais de 80 anos, o marido, provavelmente, logo logo vai chegar à casa dos 90.

Quem caminha atrás deles na rua muitas vezes se irrita com o ritmo despreocupado dos passos daquele casal. Alguns torcem o nariz, outros franzem a testa. Tudo isso para dizer a eles que a rua não os pertence. É como se reclamassem: "Ei, vocês velhos atrapalham a nossa loucura". O casal, porém, se mantém indiferente e continua a caminhada. Sem pressa, eles seguem ignorando a agressividade da paisagem urbana. São calmos, ternos e transmitem uma tranquilidade de quem viveu realizando sonhos, trabalhando muito, mas sem marcas de ganância no rosto. Sem R$ 15 mil por mês ou uma grande mansão, mas lutando sempre para serem felizes. Ao entrarem em um banco, eles são capazes até de fazer as pessoas estressadas com a demora na fila desviarem os olhos e prestarem atenção neles por um minuto.

Se pudessem dar um conselho àquelas pessoas, diriam: "Amor não enche barriga, mas dinheiro não preenche a alma. É preciso ser livre, ter opções, não seguir a manada, para ser feliz. Quem segue um modelo pronto ao invés de reiventar o próprio caminho está condenado não à pobreza ou ao anonimato, mas à infelicidade ou à felicidade parcial. No final, as duas coisas dão na mesma. Não deixe que comprem seus sonhos, sua integridade ou diminuam o tamanho da sua alma. A menos que seu espírito já tenha sido devorado".

O senhor veste calças azuis escuro de linho, paletó do mesmo material, camisa branca na estica e uma boina bége muito elegante (que facilmente seria usada por algum modernete, mas sem o mesmo charme, com certeza). Curiosamente, o nariz dos idosos parece sempre muito grande e as orelhas também. Para amparar o andar, ele usa uma bengala. Aos 90 anos, os joelhos sentem mais forte o peso da vida e por pouco não o suportam.

A mulher é mais alta e esguia que o marido. Ela parece invadida por uma vivacidade, uma segurança de dar inveja em garotas que percoreram menos da metade dos anos vividos por ela. E sabe-se lá as dores e as alegrias que emprestaram a essa senhora esse ar de rainha, mesmo sem maquiagem nem jóias e calçada em simples mocassins marrons. Dela emana um brilho intenso. Talvez a luz venha da delicadeza em prender os cabelos lisos e brancos, cortados na altura do queixo, com fivelas de moça, quem sabe do esmero em vestir um vestido estampado de flor, para se sentir charmosa e parecer charmosa para o marido.

Ele a acompanha sempre de mãos dadas. Ela se sente nitidamente protegida. Aquele homem de cabelos brancos como algodão e pele enrugada como um maracujá parece um menino orgulhoso em exibir a primeira namorada. Ele ainda vê nela a garota jovem e bonita de muitos muitos anos atrás. Por isso a conduz pelas ruas segurando firme pela mão e entrelaçando os dedos nos dela. Uma intimidade que raramente se enxerga em casais jovens, sem uma longa estrada para ver quando olham para trás. Só os velhos podem dizer se levaram uma vida feliz.

Acredito que eles diriam que um caminho como esse se faz com muitas quedas, decepções e, principalmente, um amor enorme e uma compreensão sobre-humana. Quem pode dizer quantas vezes aquele homem traiu aquela mulher, nenhuma vez ou um milhão de pares coxas por aí? E sabe Deus o que uma senhora tão respeitável tem para contar sobre o passado. Mas isso já não parece importante para eles.

Aquele casal pode ter encontrado o que realmente é grande, significante, em uma vida com cara de existência. Eles ainda se amam, 60 anos depois ainda se arrumam um para o outro, sem deixar de lado os detalhes. Ainda vivem de mãos dadas. Conservam um olhar de cumplicidade, respeito e cuidado mútuo. Como diria minha avó, "que Deus te benza, te guarde e conserve assim para sempre". E que eu saiba construir uma velhice assim para mim também.

3 comentários:

Alamo do Mont disse...

lindo texto, conseguiu me deixar arrepiado

Julliany Mucury disse...

Lindo, lindo. Que beleza anda em tua escolha, nas estruturas. Acho massa, das de mil folhas, aquelas bem elaboradas. Xêro.

André Lemos disse...

Eu sou o resto da vida
Um velho homem velho
Ando vagarosamente
Na velocidade do mundo.
Eu sou a contradição
Um ser que desdenha
À espera da morte.

Cruel, compreensivel
Por que viver?
Agora que diferença faz
Ter sido rico ou pobre?
Iremos seguir o mesmo caminho.

Esses pensamentos me atordoam
Vou voltar ao meu balançp
Irei voar alto
Com os olhos fechados.